domingo, 28 de fevereiro de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - parte 5

Foi lá no sítio que Silvio me contou sua história. Seu destino não era ser engenheiro. Ele sonhava em voar, desde menino. A família o mandou para Barbacena, onde estudaria para ser piloto da aeronáutica. Uma febre reumática pôs fim aos seus sonhos e ele nunca conseguiu superar o desejo frustrado. Tinha uma tristeza infinita no olhar, o que o tornava especialmente atraente. Foi com Silvio que perdi a virgindade.

Um dia, quando estávamos na casa da dona Anne, ele me levou a conhecer um sítio que queria comprar. Pediu-me moderação no entusiasmo, alegando que o preço poderia ficar mais caro. O sítio era lindo e Silvio o comprou. Naquele instante, soube que estava apaixonado por mim e que ia querer se casar comigo. Foi o suficiente para que eu me desinteressasse dele e saísse da sua vida. Sei que ficou profundamente magoado e ficamos muitos anos sem nos ver.

Encontrei-o casualmente na rua, no centro da cidade. Trocamos olhares de admiração. Ele continuava lindo e eu quase não havia mudado, na aparência. Chamou-me para ir ao apartamento dele. Continuava morando no mesmo lugar, depois de anos. Cheguei a ir lá. Era um apartamento simples demais, para quem tinha uma boa situação financeira. A decoração era sombria e triste. Os móveis pareciam juntados ao acaso, sem harmonia. E eram todos feios, descuidados e sujos. Em toda a casa não havia uma única cor alegre, vibrante. Tudo tendia para o marrom escuro, fechado, deprimente. Não era um lar feliz. Conversamos longamente, mas já não éramos os de antes. Muito tempo se havia passado e já não nos entendíamos mais. Saí definitivamente da vida dele. Nunca mais o vi.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Terremoto no Chile

Meu pensamento e minhas orações vão para o povo chileno, vítima de um terremoto esta madrugada. Conheci esse país lindo, quando estive lá durante a ditadura do Pinochet, e aprendi a amá-lo. Fiz ótimas amizades e elas só não perduraram porque o chileno não é lá muito de escrever. Pelo menos foi a explicação que recebi. Mas eu amo vocês, queridos amigos, e sinto saudades. Que Deus proteja o Chile e sua gente. Arriba Chile!!!

A terceira sinfonia de Brahms - parte 4

Chegamos cedo pela manhã em Guapi e fomos todos ao pomar colher amoras. Dona Anne ia fazer uma deliciosa torta para a sobremesa. Enquanto colhíamos a fruta, ela me ensinou a cantar uma antiga canção francesa “La Mer”, que em francês pode significar tanto o mar quanto, foneticamente, a mãe (la mère). A música, muito conhecida até hoje, foi, durante longo tempo, um grande sucesso e teve sua versão para o inglês “Beyond the Sea” cantada por Bobby Darin.

Veja Charles Trénet, ao vivo, no Olympia de Paris cantando “La Mer” e cante você também. A letra vem logo abaixo.
http://www.youtube.com/watch?v=KHYj1-3QrrY&feature=related

La mer
Qu'on voit danser le long des golfes clairs
A des reflets d'argent
La mer
Des reflets changeants
Sous la pluie

La mer
Au ciel d'été confond
Ses blancs moutons
Avec les anges si purs
La mer bergère d'azur
Infinie

Voyez
Près des étangs
Ces grands roseaux mouillés
Voyez
Ces oiseaux blancs
Et ces maisons rouillées

La mer
Les a bercés
Le long des golfes clairs
Et d'une chanson d'amour
La mer
A bercé mon coeur pour la vie

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - parte 3

Eu já notara os olhares insistentes de Silvio, as brincadeiras e as insinuações. Não tinha conseguido amar o Paulo e achei que poderia me apaixonar por ele, um rapaz bonito e esbelto, de olhos azuis e cabelos castanhos, dono de um Karman Ghia vermelho. O tempo passava e eu não tinha coragem de definir nada com nenhum dos três.

Um dia, Silvio me chamou para um passeio. Levou-me ao sítio de uma francesa, dona Anne, e seu marido, um crítico literário. Eles moravam perto de Guapimirim. Gostei do casal e da casa rodeada de canteiros de flores e cheia de estantes de livros. Assim que ouviu meu nome, dona Anne se pôs a cantarolar uma música do século XIX, usada pelos soldados franceses na marcha em direção à guerra. Com o tempo, a canção entrou para o repertório infantil. Ironicamente, dona Anne, que mal me conhecia, acabou sendo o corifeu do meu teatro.

Ne pleure pas, Jeannette,
Tra la la la la la la la la la la la la,
Ne pleure pas, Jeannette,
Nous te marierons {x2}
Avec le fils d'un prince, Tra la la ...
Avec le fils d'un prince,
Ou celui d'un baron {x2}
Je ne veux pas d'un prince, Tra la la ...
Je ne veux pas d’un prince
Encor moins d'un baron (x2)
Je veux mon ami Pierre, Tra la la ...
Je veux mon ami Pierre
Qui est dans la prison (x2)
Tu n'auras pas ton Pierre, Tra la la ...
Tu n’auras pas ton Pierre
Nous le pendouillerons (x2)
Si vous pendouillez Pierre, Tra la la ...
Si vous pendouillez Pierre
Pendouillez-moi z’avec(x2)
Et l'on pendouilla Pierre, Tra la la ...
Et l’on pendouilla Pierre
Et sa Jeannette avec. (x2)

Ouça a música:
http://www.youtube.com/watch?v=NqDyvHgxoKY

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - parte 2

Uma vez, ele me convidou a ir ao apartamento onde morava, em Vila Isabel. Eu era virgem, tive medo e recusei. Ele jurou que só ia fazer um almoço especial para mim e queria que eu ouvisse uma música, aquela que seria a nossa música. Era a terceira sinfonia de Brahms.

Ouça a terceira sinfonia de Brahms, em seu terceiro movimento, executada pela orquestra filarmônica de Londres, sob a regência do maestro Felix Weingartner. A gravação é de 1938!

http://www.youtube.com/watch?v=pbab6FrKC1M&feature=related

Paulo fez tudo o que um homem, mesmo apaixonado, não costumava fazer naquele tempo, e cumpriu rigorosamente o que prometeu, deixando-me na porta de casa. Era um cavalheiro, mas nem essa qualidade me impediria de traí-lo.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - parte 1

Era com Paulo que eu devia ter me casado. Minha mãe fez de tudo para me forçar a casar com ele. Paulo tinha todas as qualidades para um futuro bom marido: era sério, terno, amoroso, me amava e, como se não bastasse, tinha ainda uma boa profissão e ganhava bem. Pena que não tinha a qualidade mais importante pra mim, naquela época. Era feio. Ao lado do meu futuro marido a feiúra dele se acentuava. Escolhi casar com aquele que só tinha a última das qualidades do Paulo.

Ao fazer minha escolha eu o perdi para sempre. Soube, tempos depois da nossa separação e quando já estava casada, que ele tinha se casado com uma judia mais velha do que ele, e que tivera uma filha. Fiquei com inveja, com ciúme e senti um profundo arrependimento.

Nós nos conhecemos no trabalho. Paulo inventava qualquer pretexto para ir à minha sala. Eu sabia que ele era noivo e, embora não oficialmente, eu também era. Um dia, ele tomou coragem e me convidou para almoçar, e eu lhe joguei na cara que sabia que era noivo. Ele não se deu por vencido: “Só chamei para almoçar”. Não sei por quê gostei da resposta e fui almoçar com ele. Levou-me a um dos melhores restaurantes das redondezas da Praça Mauá, onde trabalhávamos, o “Mosteiro”. Ele quis me impressionar e conseguiu. Outros almoços se seguiram e eu percebia que Paulo estava gostando de mim. Podia ter dito que não o amava, que não perdesse seu tempo comigo, mas eu era inconsequente, não queria perder a companhia, as idas ao cinema, os prazeres gastronômicos e o papo agradável. Eu me calei e fui adiante.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O Purgatório - final

Minha filha acabou concordando comigo, mas falou da sua preocupação com a dificuldade que estávamos tendo para conseguir uma acompanhante à altura da Adriana. Rezei muito e Deus me atendeu. Depois da moça má, finalmente veio outra, também de nome complicado, mas boazinha e eficiente.

Nekar e Adriana se apiedavam do meu sofrimento noturno e não davam trégua aos técnicos de enfermagem. Iam atrás deles em busca do alívio para as minhas dores. Graças a elas eu consegui ter forças para superar toda aquela provação.

O braço esquerdo precisou ser operado de novo, o que deixou o ortopedista irritadíssimo. Ele se queixava do descaso da enfermagem. O braço direito continuava engessado, mas chegou o dia em que o gesso foi removido. Meu coração palpitava de alegria. Eu ia pelo menos ter um braço livre. Ia poder coçar o nariz, passar a mão no rosto, tocar a campainha. Era mais um passo em direção à liberdade.

O médico veio acompanhado do técnico do raios X, que retirou o gesso. Ele me pediu que para fazer alguns movimentos e relatar qualquer dor. Infelizmente, o braço doía e, para meu desespero, ia voltar para o gesso. Não disse nada ao ortopedista, mas acho que de tanto bater esse braço, quando estava na UTI, devo ter atrasado minha recuperação. Ainda não era daquela vez que ia ficar livre e acabei terrivelmente deprimida. Minha provação parecia não ter fim.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Purgatório - parte 3

Gostei da primeira que se apresentou, Adriana. Era gordinha e notava-se claramente sua ascendência indígena. Era infinitamente paciente e amável. Mas não foi fácil encontrar a segunda acompanhante. A primeira a se apresentar, depois da Adriana, foi uma mulher estranha de nome complicado, desses em que se juntam uma parte de um nome com outo. Não gostei dela e a caçulinha também não, mas não me disse nada. Mal chegou se sentou no sofá e começou a ler um livro sobre vampiros. E dali praticamente nao arredou pé. Custava a me atender, quando eu lhe pedia qualquer favor e o fazia contrariada. Dormi preocupada, acordei várias vezes e sempre a via lendo o livro. Por alguma razão que nunca saberei explicar, tinha medo daquela mulher.

No dia seguinte, quando a caçulinha veio me visitar, pedi-lhe que buscasse outra pessoa para cuidar de mim e lhe contei como passei a noite. Ela então me confessou que quase não fechara o olho aquela noite. Também tivera medo. Graças a Deus ela estava de acordo comigo e aquela mulher sombria e mal-encarada ia embora.

Outras se sucederam. Houve uma outra que parecia adorável a princípio. A caçulinha gostou dela e eu também, mas na noite que passou comigo foi ríspida e mal-educada. Sentou-se no sofá e se recusou a me atender. Estava cansada, disse, e ia dormir. No dia seguinte, contudo, quando a caçulinha veio me visitar, ela era toda sorrisos e se desmanchava em gentilezas. Contei tudo o que havia passado durante a noite e, dessa vez, a caçulinha me olhou com olhos duvidosos, enquanto a moça má não conseguia disfarçar o ódio que sentia por mim. Tive medo. E se não conseguisse convencer minha filha?

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Purgatório - parte 2

Alessandra e o marido sonharam um dia com um futuro melhor para seus filhos e foram morar na Itália. Ela me falava, com um brilho nos olhos, da qualidade de vida que tinha na cidade onde morou. A saudade da família e a distância, porém, acabou vencendo a determinação do casal e eles voltaram a morar na distante Raiz da Serra e a enfrentar os riscos diários de ir ao trabalho, em troca de um salário magro e insuficiente, que fazia com que Alessandra ainda tivesse de fazer bicos para preencher os buracos do orçamento. Contava com orgulho que os filhos falavam italiano fluentemente, mas não pensava em voltar para o primeiro mundo Tinha raízes profundas no Brasil.

Dagmar era vizinha de Alessandra e, como ela, era também uma batalhadora. Além de trabalhar como acompanhante fazia doces para vender. O negócio ia bem e Dagmar acabou se animando. Comprou um carro novo e bonito, zero quilômetro, para ser pago em muitas prestações que triplicavam o valor original do veículo. Mas ela não se preocupava nem se lastimava. Sabia que ia conseguir, ela e o marido, outro batalhador, e trabalhavam incansavelmente. Era jovem e cheia de confiança no futuro. O carro foi apenas sua primeira conquista. Sonhava com muito mais. Nenhuma distância ou obstáculo ia impedi-la de avançar.

Lamentei quando elas tiveram de ser substituídas. Para mim, no entanto, foi uma boa solução. O plano de saúde ia pagar as acompanhantes, e isso me pouparia muito dinheiro. Minhas reservas financeiras estavam chegando ao fim. Duas outras moças iriam substituir Alessandra e Dagmar. Ia sentir saudades delas e também ia ter problemas até encontrar substitutas à altura delas duas.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O Purgatório - parte 1

A unidade semi-intensiva era, sem dúvida, muito melhor do que o box da UTI, mas os médicos plantonistas eram os mesmos. E eles permaneceram insensíveis diante das minhas dores que a cada dia se tornavam mais fortes. Diziam que não podiam aumentar a dose do remédio, que o excesso poderia prejudicar minha saúde. Eu não acreditava. Eles eram maus, e era assim que eu os via.

As dores eram mais fortes à noite e, por isso, eu raramente dormia. Tinha os dois braços engessados e não podia chamar a enfermagem. Acabei desenvolvendo fobias. Fui tomada por uma espécie de pânico incontrolável. Não suportava ficar só. Implorei para que minha filha ficasse ao meu lado, mas ela não tinha como me atender. A solução foi procurar enfermeiras.

Foi a técnica de enfermagem que chamávamos de Didi quem trouxe as duas moças que cuidariam de mim. Didi era a que melhor me atendia e eu sabia que quando ela estava de plantão nada de mau poderia me acontecer.

As moças moravam muito longe, enfrentavam longas horas dentro de ônibus sujos, guiados por motoristas enbrutecidos e cansados, que dirigiam enlouquecidos pelo calor e o trânsito infernal. Arriscavam suas vidas diariamente. Acordavam muito cedo, com o céu ainda escuro, mas nenhum obstáculo as impedia de chegar ao trabalho. Nunca atrasavam e estavam sempre, milagrosamente, de bom humor. Eram verdadeiros anjos que não saíam do meu lado e me contavam suas histórias de luta e coragem. Ensinavam-me a superar as agruras do cotidiano. E eu me sentia como Shariar, ouvindo as histórias de Sherazade.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Saudade do Raul - final

Acompanhei a vida da Solange à distância. A vida nos separou. Poucas vezes nos encontramos, mas já não era como antes. Ela sorria e lembrava dos nossos tempos de teatro. Falava frequentemente do seu personagem Raul, que afinal nunca conseguiu se expressar, porque Solange quase não lhe dava voz. Ela parece ter se fixado nos dias felizes da nossa infância e foi com surpresa que percebi o quanto o teatro tinha sido importante na vida dela.

Os pais já não tinham a situação financeira confortável de antes e acho que ela deve ter enfrentado dificuldades para criar os meninos. Mas ela deve ter falado do teatro com eles, porque soube que o caçula virou ator. Eu vivia sempre pensando no futuro e as histórias do passado não me interessavam muito. Nossos encontros foram breves e nunca nos reaproximamos.

Um dia de junho, poucos tempo depois do nascimento do meu neto, Solange morreu. Morreu cedo demais. Acho que a tristeza acabou com ela. Eu estava a milhares de quilômetros de distância e só soube da sua morte quando voltei. Não consegui chorar. Sempre tive inveja das pessoas que choram por qualquer coisa. Chorar foi sempre difícil pra mim. Passei a vida inteira sem chorar. Choro agora. Choro de saudade do Raul.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Saudade do Raul - parte 2

Solange, ou o Raul do nosso teatro, sempre me intrigou. Era muito bonita, mas parecia não ter consciência disso. O nariz e a boca eram cuidadosamente desenhados. Os cabelos eram louros e cacheados e os olhos, da cor do caramelo, estavam encimados por longas pestanas que lhe davam um ar sonhador. Hoje, quando me lembro dela naquela época, acho-a parecida com a Catherine Deneuve. Tinha aquele mesmo ar “tô-nem-aí” da atriz francesa, só que, no caso da Solange, não era encenação. Ela parecia viver a vida sonhando. Nunca a vi aborrecida ou irritada.

Levava uma vida de princesa. Seus pais lhe davam tudo e, no Natal, Papai Noel era sempre muito generoso com ela. Lembro-me de uma vez que ela ganhou de presente a Amiguinha, o sonho de toda menina. Íamos sempre à casa dela na esperança de brincar com a boneca. E Solange deixava. Nunca teve ciúme de seus brinquedos. Era doce e desprendida.

Aos doze anos, se enrabichou por um policial e se casou com ele poucos anos depois, para horror da minha mãe, que achava os pais da Solange condescendentes demais. Ela dizia que eles lhe satisfaziam todos os caprichos. O casamento não durou muitos anos - o tempo suficiente para ela ter dois filhos. O marido morreu em ação. Depois da morte do marido, Solange mudou. Tornou-se mais aérea, mais triste, mais distante e os pais tiveram de assumir a educação dos netos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Esqueceram de mim

Abro um parêntese para falar de um assunto que chamou minha atenção.

Em meio à folia do Carnaval, uma nota no jornal me deixou triste. Encontraram uma menina morta no Aterro, perto do MAM. Segundo a polícia, ela foi a infeliz vítima de um pedófilo e tinha entre seis e oito anos de idade. Seu corpinho indefeso ainda exibe as marcas da violência de que foi vítima.

Acompanhei a notícia no dia seguinte. Nem o pai nem a mãe apareceram para reclamar o corpo. Nenhum parente, ninguém. Era uma menina de rua, possivelmente, que estava fantasiada e feliz, no dia de sua morte.

Fiquei pensando naquelas mães que sofrem com o desaparecimento de seus filhos. Elas fazem vigília nos prédios públicos, querendo chamar a atenção das autoridades. Esperam ter notícias e não perdem a esperança de um final feliz. Mas há aquelas que pressentem que não vão ver seus filhos outra vez e reclamam seus corpos.

Ninguém reclamou o corpo da menininha morta. Qual era o seu nome? Quantos anos tinha? Que carência de afeto tão grande a levou a confiar no homem malvado? Tinha irmãos? Do que gostava? Qual era o seu sonho? Onde andam seus pais? Por que não aparecem?

Essas perguntas permanecem sem resposta. Ninguém reclamou o corpo da menina morta. E há quatro dias ela está sozinha, abandonada numa gaveta da geladeira do IML, correndo o risco de ser enterrada como indigente. Não pode haver solidão maior. Pobre menininha. Descanse em paz.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Saudade do Raul - parte 1

“Out, out brief candle!
Life’s but a walking shadow
A poor player that struts and frets his hour upon the stage
and then is heard no more”


Ela se chamava Solange, mas à noite nós a chamávamos de Raul. Era quando fazíamos o nosso teatro e cada uma de nós tinha um papel a desempenhar. O da Solange tinha o mínimo de diálogos possível, porque ela era uma atriz pra lá de canastrona. Quando tocava a fala de seu personagem, ela ria e esquecia o que tinha de dizer, para nosso desespero e gritos de “fora, fora daqui.”. Solange era o anticlímax do nosso teatro. Eu me arvorava em diretora e muitas vezes tive vontade de voar no pescoço dela. Se bem que, às vezes, ríamos também, especialmente quando a cena se tornava excessivamente dramática. Nosso teatro não tinha roteiro e os diálogos eram improvisados na hora. Não havia nem sequer uma trama. A história ia acontecendo pouco a pouco e não tínhamos preocupação com o resultado, apenas com a atuação.

Muitas vezes pensamos em tirar Solange do elenco, mas não podíamos. Ela era a produtora e patrocinadora. Sem ela, nada aconteceria. Eu bem que tentei, uma vez, fazer o teatro lá em casa. Peguei uns lençóis, que serviriam de cortina, mas minha mãe logo percebeu e me botou de castigo. Eu não podia usar os lençóis limpos para brincar. “E os sujos?” “Também não”, respondia com determinação. Sendo assim, não nos restava outra alternativa que não fosse usar os lençóis da tia. Ela não se importava e nossa arte podia prosseguir. Naquele tempo, achávamos que poderíamos ser artistas quando crescêssemos, mas a vida nos levou para outros caminhos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ainda na UTI - final

Depois da água, introduziram o alimento. Quem anunciou que eu ia poder almoçar foi o mesmo homem de branco que tentou me matar na UTI. Depois que comecei a falar ele mudou o comportamento, tornando-se simpático e agradável. Para confirmar minha desconfiança, um dia lhe perguntei: "não foi você que me convidou pra tomar uma água de coco na praia?" Primeiro, ele ficou sério; depois, sorriu e confirmou. Tive muito medo naquele momento. Reuni toda a minha coragem e lhe disse: "achei o seu convite muito simpático." Só Deus sabe a força que fiz para superar o ódio que invadiu meu coração.

Era ele que estava ao meu lado aguardando a chegada do primeiro almoço. Eu imaginava coisas gostosas e falava com entusiasmo. Ele apenas sorria, como uma cobra que sabe que vai comer o rato. Chegou a minha primeira refeição. Era apenas um potinho de gelatina. O homem de branco sabia o tempo todo que seria apenas aquilo e se divertia com a minha decepção.

Finalmente veio a boa notícia. O médico chefe veio dá-la pessoalmente uma manhã, logo após o café: eu ia ser transferida para a Unidade Semi-Intensiva depois do almoço. “Obrigada, meu Deus. Eu Vos agradeço mais essa graça alcançada.” Esperei impacientemente a chegada da hora da transferência. Mal comi e nem tirei o cochilo da manhã. Não sei falar da felicidade que senti quando a maca veio me buscar. A felicidade é tão pequena e, ao mesmo tempo, tão grandiosa. Ao chegar na USI me deitaram numa cama macia. Sim, eu tinha chegado ao céu. Dois técnicos de enfermagem risonhos e simpáticos me esperavam e me davam as boas-vindas. Agradeci e dormi pesadamente. Não me lembro de ter domido tão bem em toda minha vida. Mas eu ainda não tinha chegado ao céu.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ainda a UTI - parte 3

A minha sorte era quando eu recebia atendimento das médicas plantonistas ou das técnicas de enfermagem. As moças sempre foram mais sensíveis e delicadas. Elas tomavam muito cuidado ao fazerem minha higiene. Tinha fraturado os dois braços. Tinha ainda um fixador nos quadris que requeria muito cuidado e atenção na hora do banho. Não podia ficar de lado e muito menos de bruços - a minha posição preferida para dormir. Quando vi o fixador pela primeira vez me senti como um inseto, desses que os entomologistas prendem com alfinete num papel.

Passei a sofrer de insônia. Eram noites inteiras sem dormir. Isso para mim era raro. Costumava brincar dizendo que eu era boa de cama. O médico explicou que a posição de costas não favorecia o sono. Então pedia um remédio para dormir à noite, mas não me davam. No dia seguinte, acordava de mal humor, cansada.

A única boa lembrança que tenho da UTI foi quando bebi água pela primeira vez, depois de mais de um mês de internação. Eu sonhava com esse dia. Um dia pedi ao homem de branco que me desse um pouquinho de água. Esse era bonzinho e encontrou uma solução. Embebeu uma gaze em água e colocou nos meus lábios. Suguei com sofreguidão o pouco líquido que mal escorria. Pedi mais e ele repetiu a operação. “Mais, por favor.” Ele me disse que ia ter de conversar com o médico. “Já falou com o médico?” “Ainda não”. “Por favor, eu imploro.” Até que um dia ele veio com um pouquinho de água no copo. Eu ia poder beber 100ml de água de hora em hora. Eu ficava de olhos fixos no relógio, esperando dar a hora. Às vezes, trapaceava, tentando encurtar o tempo. Nunca foi tão bom beber água.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Joanna Lumley e a Aurora Boreal

A atriz inglesa Joanna Lumley, de "Absolute Fabulous", viajou à Noruega para ver a Aurora Boreal. Veja o encantamento da atriz. A música de fundo é a Canção de Solveig da Suíte Peer Gynt, do compositor norueguês Edvard Grieg.
Assista a essa beleza de documentário:
http://www.youtube.com/watch?v=BCqX_aIHQ0I

Ainda a UTI - parte 2

Com o tempo, passei a ficar acordada com mais frequência e um dia recebi a visita do médico ortopedista que realizou aquela longa operação. Era um homem gordo e mal-humorado. Eu lhe disse: “Que sorte que tive de não ter sofrido nenhum dano na coluna e na cabeça.” E ele respondeu: “Sorte? Sorte seria se o acidente não tivesse acontecido.”

O tempo passava e eu continuava na UTI. Aos poucos, eles foram diminuindo a dose dos analgésicos e as dores foram aumentando. À noite, especialmente, elas vinham com toda força e eu me desesperava. Alguns homens de branco eram simpáticos e tentavam aliviar meu sofrimento. As moças eram mais atentas e carinhosas, mas nem sempre elas podiam ficar comigo. Tinham que obedecer uma escala de plantões. Na troca dos turnos ou durante o jantar era impossível receber atendimento. E isso durava horas. Muitas vezes chorei e me desperei. As dores eram insuportáveis e eu precisava de mais analgésicos. A maioria dos homens de branco eram rudes e não se importavam. Os médicos plantonistas, com raras exceções, não se interessavam e diziam que era assim mesmo. “Fratura óssea dói muito.” Um dia, ao ouvir tal resposta, perdi a cabeça e gritei com o médico. “Não acredito que em pleno século vinte e um, com todas as evoluções da medicina e da ciência, não exista um único remédio para acalmar minha dor.” Ele pareceu não se importar e saiu porta afora. Enlouqueci. Gritei o nome dele várias vezes e não sosseguei enquanto ele não me deu um remédio para acalmar a dor.

No dia seguinte, durante a visita da caçulinha, implorei para que ela me tirasse daquele hospital, disse-lhe que estava sofrendo muito. Mas ela não acreditava em mim. Conversava com os médicos e eles deviam lhe dizer que eu estava nervosa, e que minha atitude era normal. Fico imaginando agora quanta gente sofre nesse mundo, quanta gente passa pelo que passei e sente dores até mais atrozes. Quantas pessoas estão neste momento limitadas física e mentalmente e não podem se expressar. Quanta gente tenta pedir auxílio e não é atentida, porque ninguém consegue imaginar o sofrimento que sentem. Agora eu entendo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ainda a UTI - parte 1

À noite, o sono me venceu. Ao despertar, a moça de uniforme, meu anjo da guarda, estava ao meu lado, pronta para me levar para a radiografia. Alguém perguntou se podia ir também e ela respondeu: “pode ir quem quiser.” Não entendia o porquê do interesse. Só fui entender muito tempo depois.

A sessão de radiografias foi longa, mas a moça de uniforme não me deixou só nem um minuto. Os homens de branco cochichavam com o pessoal do raios X. Escutei uma mulher de uniforme branco perguntar: “é gente nossa?” Tive a impressão que se referia à moça de uniforme. Depois de algum tempo, comecei a sentir dores muito fortes. Reclamei e eles me deram remédio. Dormi durante algum tempo e, quando acordei, ainda estava na radiografia. Não sei quanto tempo permaneci lá.

Finalmente, fui levada para o box da UTI. Passei a esperar, minuto a minuto, a vinda do diretor médico responsável por aquele setor. Nem sempre ele vinha e, quando aparecia, mostrava-se sempre muito otimista e animado. Gostava de ser portador de boas notícias. Era um homem muito bonito e simpático, mas nem sempre dizia a verdade.

Não sei a razão, mas a promessa de ser transferida para a unidade semi-intensiva não aconteceu, e ninguém me dizia o porquê. A filha caçula ia me visitar diariamente. Hoje tenho certeza de que a sua presença constante foi fator determinante para a minha sobrevivência naquele setor. A partir do momento que comecei a falar, pedi-lhe que me tirasse dali. Cada vez que a via, renovava o pedido. Ela me pedia calma, paciência, dizia que ia tomar providências, mas sei que nunca acreditou em mim. Como ela poderia acreditar que um hospital abrigasse tanto horror?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O verão mal-assombrado de Búzios - final

Uma meia hora depois que adormeci, o barulho começou. No início era fraco, como se um casal estivesse fazendo amor no quarto ao lado e a cama batesse contra a parede. Aos poucos, porém, as pancadas ficaram mais forte, como se alguém estivesse querendo por a parede abaixo com uma marreta. Assustadas, Marilia e Barbara gritaram meu nome, temiam um desabamento justamente em cima de mim. Eu não ouvia. Apavoradas, elas saíram porta afora e foram bater no quarto ao lado. Ninguém atendeu a porta. Elas voltaram ao quarto e o barulho persistia. Gritaram outra vez meu nome. Eu seguia dormindo. Desanimadas, correram até a recepção à procura de um funcionário que desse fim aquele ruído infernal. Não encontraram ninguém. A pousada estava deserta e parecia que éramos as únicas hóspedes.

Marilia e Barbara ficaram do lado de fora do quarto tentando entender o que estava acontecendo. Haviam perdido o sono. Várias vezes entraram e saíram, mas nada mudara. Já era alta madrugada quando o ruído cessou e elas puderam, enfim, entrar no quarto e dormir.

Chamamos o garçom e relatamos o ocorrido. Ele nos olhava sem jeito e dizia não saber de nada. Chamamos o gerente. Este também não conseguia entender o que tinha acontecido e nos pedia desculpas. Barbara não se conformava em ficar sem nenhuma explicação e insistia. Ninguém soube esclarecer o que tinha acontecido.

Tentamos esquecer o incidente e aproveitar o dia de sol. À noite, voltamos ao restaurante e o mesmo garçom veio nos atender. Marilia, muito falante e charmosa, já tinha feito amizade com ele. Ela lhe contou o que havia acontecido na noite da nossa chegada e ele disse exatamente o nome da pousada onde estávamos. Surpresas e intrigadas quisemos saber como adivinhara e ele prontamente nos contou o que sabia. O dono da pousada havia falecido e diziam na cidade que ele voltava ao lugar quase todas as noites. Aquele barulho que ouvimos era a presença dele. Marilia e eu ficamos arrepiadas, mas Barbara, como boa americana, havia imaginado alguém de carne e osso. E se sentia aliviada com o fim do mistério: “Oh! Ainda bem que foi só uma assombração.”

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O verão mal-assombrado de Búzios - parte 1

Foi Marília quem sugeriu irmos passar o fim de semana em Búzios, quase no final da temporada de verão. Ela queria que Barbara, uma americana que falava português e era apaixonada pelo Brasil, conhecesse o lugar. Eu iria levá-las no meu carro e ficaríamos hospedadas numa pousada em Geribá. Durante a viagem, cantamos alegremente as músicas do Nei Matogrosso, de que Barbara tanto gostava.

Cante com a gente “A Rosa de Hiroshima”:
http://www.youtube.com/watch?v=9YJaaVAQ5lE&feature=fvst
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

De cara, gostamos da pousada, com aquele deck comprido se espreguiçando em direção ao mar. Chegamos numa sexta-feira, no final da tarde. Deixamos nossas coisas no quarto e fomos correndo para o centro, para a Rua das Pedras. Quando anoiteceu, escolhemos um bom restaurante, onde comemos um jantar delicioso e tomamos vinho. Mais uma volta pelo centro e voltamos à pousada.

Marilia e Barbara conversavam, enquanto tiravam as roupas das malas. Durante um tempo participei da conversa, mas vencida pelo cansaço caí no sono, muito a contragosto. Era o vinho iniciando seu efeito. Eu ainda podia ouvi-las ao longe, mas as vozes foram aos poucos sumindo. Adormeci.

No dia seguinte, acordei cedo. Saí do quarto, dei uma volta pela pousada, esperando que Marilia e Barbara acordassem. Voltei ao quarto. Elas continuavam a dormir. Resolvi caminhar sozinha pela praia. Na noite anterior, tínhamos combinado esse passeio. Na volta, fui ao quarto e as duas ainda dormiam. Estava com fome e resolvi não esperá-las para o café da manhã.

Estava ainda tomando meu café quando Marilia e Barbara apareceram. Olharam-me com raiva. “O que foi? Por que estão com essas caras?” Negaram-se a responder até atinarem que eu realmente não sabia a razão de tanto aborrecimento. E me contaram a história de terror que vivenciaram durante a noite.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Baila comigo

Era verão como agora. Fazia um calor abafado, sufocante e o asfalto derretia sob os pés,também como agora. Saí do banco e andei depressa até o meu carro. “Droga! Quem estacionou atrás de mim?” Voltei ao banco irritada e o guarda apontou o dedo para um rapaz que estava na fila. Ao me aproximar, eu o reconheci. Era Ítalo, meu grande amor dos tempos do ginásio. Continuava bonito. Não era alto, mas era esbelto e tinha um perfil romano dessas estátuas que a gente vê ilustradas em livros de história. A última vez que o vira devia ter uns 14 anos. Eu já tinha casado, separado e era mãe de três meninas. Ele também ficou surpreso ao me ver e me contou o que havia feito durante aqueles anos.

Tinha se casado também, estava separado e tinha filhos. Não posso negar que gostei da coincidência. Durante anos ele fora piloto comercial. Estava pilotando um avião de pequeno porte, certa vez, quando caiu numa floresta. O impacto da queda provocou-lhe uma doença cardíaca e nunca mais pode pilotar. Desolado, não via mais nenhum sentido na vida. A enfermidade do coração podia matá-lo a qualquer momento e sentia-se como se uma espada estivesse pronta para decepar-lhe a cabeça. Andava deprimido. É impressionante como uma trágica história de vida pode se desenrolar durante um tempo de espera na fila de um banco.

Convidei-o para ir à minha casa. Conversamos muito, rimos, brincamos um com o outro, lembramos do tempo da escola, das nossas músicas preferidas, e eu confessei que era secretamente apaixonada por ele. Ele disse que nunca notou nada. Mas naquela noite me olhava com outros olhos. Botei a Rita Lee pra tocar e dançamos “Se Deus quiser, ainda acabo voando”. A noite terminou e ele foi pra casa levando meu telefone. Ia ligar, com certeza. Ainda nos veríamos muitas vezes. Nunca mais soube dele. “Se Deus quiser, ainda morro bem velho”.

Muito tempo se passou. Não sei precisar quanto. Sempre fui ruim em matéria de avaliar a passagem do tempo. Um dia, conversando com minha irmã - uma pessoa que conhece todo mundo no planeta -, ela me disse de repente: “Eu te falei da morte do Ítalo, não falei?” Levei um susto. Não, ela nunca me dissera nada. “Mas faz tanto tempo... Não sei como fui me esquecer de te contar”.

Ele morreu naquela mesma noite, ao chegar em casa.

Copie e cole o link abaixo para relembrar a música:
http://www.paixaoeromance.com/80decada/baila/h_baila.htm

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O verão do adeus a Bia - final

A viagem de avião foi péssima. Sentei-me ao lado de um casal antipático. A mulher, ciumentíssima, controlava todos os movimentos do marido, e este, coitado, procurava se manter imóvel entre mim e ela. Cheguei tarde da noite em Lima, e não tinha reserva em nenhum hotel. O taxista me levou para o lugar que ele considerava o mais bonito de Lima, Miraflores, mas ficava um pouco longe do centro.

No dia seguinte, tentei ligar para o Rio. Passei uma manhã inteira tentando e nao consegui. Procurei espairecer, dar umas voltas por Miraflores, mas meu pensamento estava longe. O mau pressentimento voltara e eu sentia uma necessidade urgente de falar com as meninas. Retornei ao hotel e tentei de novo. Nada.

Só consegui falar com as meninas no terceiro dia, quando decidi permanecer no quarto do hotel, sem sair um minuto sequer. Já era noite quando consegui. A empregada atendeu o telefone. A voz estava normal. Fiquei mais calma. Perguntei pelas meninas e ela me disse que estavam bem, mas eu notei algo estranho na voz dela. O que aconteceu?, perguntei e ela passou o telefone para a filha do meio, que me contou, chorando, o que acontecera.

Bia estava morta. Ela fora passar as férias de verão em Maricá com os pais e os dois irmãos. Estava jogando bola com as outras crianças. A bola rolou pela rua e Bia foi atrás. Um carro passou e ela sofreu uma pancada na cabeça. Levantou-se, não se queixou de nada, e foi para casa almoçar. Não contou nada a ninguém. Só quando começou a vomitar é que falou do acidente. Correram com ela para o hospital, onde ficou internada vários dias em coma. Pelas contas que fiz depois, o acidente da Bia aconteceu no mesmo dia em que a caçulinha quase foi atropelada.

Aquele foi o verão da perda. Foi a primeira vez que as meninas perceberam que a morte não é um fato abstrato. Eu devia estar ao lado delas nesse momento, mas não estava. Estava longe, sonhando em conhecer Machu Pichu e outros lugares exóticos. Não ia voltar tão cedo. Minha aventura apenas começara. Mesmo com o coração partido, segui viagem.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Enquanto eu dormia - final

Abro uma exceção (hoje deveria ser o final de "O verão do adeus a Bia") para postar o final desta história. Hoje, precisamente, faz um ano que aconteceu o acidente e ainda tenho medo...
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Um homem, que me pareceu médico, entrou no meu box e disse que no dia seguinte pela manhã, se eu estivesse acordada (falou “acordada” com ironia, marcando bem a palavra, insinuando que eu era madame e dormia até tarde), ele iria me levar para a radiografia. Não entendi por que era importante que eu estivesse acordada. Era um homem de baixa estatura, magro e um pouco curvado. Irritadiço, falava como se cuspisse marimbondos. Se tudo saísse bem, segundo ele, eu poderia ser transferida para a Unidade Semi-Intensiva (USI). A notícia me animou. Era a chance de sair daquele inferno. Ouvi o homem de branco que estava ao meu lado cochichar com o outro, mas não consegui entender o que diziam. Tudo o que sei é que no dia seguinte pela manhã o médico veio me buscar e eu ainda dormia.

Continuei dormindo nas manhãs subsequentes, até que resolvi reagir. Não deixei o homem de branco se aproximar de mim. Quando ele entrou no box, fiz alarde, batendo com o braço engessado na cama. Ele tentou me acalmar. Bati mais forte ainda. Outras pessoas de branco entraram e eu continuei a bater com o braço engessado, até que, constrangido, ele foi embora. Permaneci acordada o dia inteiro e não deixei ninguém se aproximar. Foi a minha sorte. Um homem que eu não conhecia anunciou, na porta do box, que ia fazer uns testes comigo para saber se eu tinha condições de ficar sem o tubo. “Tubo? Eu estava entubada? Era por isso que não conseguia falar?” Ele me deu todas as informações e iniciou o teste. Enquanto o ouvia, dizia a mim mesma “calma, você vai passar, vai conseguir, calma”. Consegui ir até o fim. Na hora de fazer as contas (parece que o sistema envolvia números), o homem do teste pediu ajuda ao homem de branco. Meu coração parou e tive muito medo. Passado alguns instantes, o homem de branco informou o resultado. Passei no teste, e me parece que com louvor – o número final tinha excedido aquele necessário para a aprovação. Ele ia tirar o tubo. “Meu Deus, eu Vos agradeço a graça alcançada!” Fazia muitos anos que eu não rezava. Enquanto tirava o tubo, o homem me dizia que eu só deveria falar no dia seguinte e me explicou por quê, mas eu não o escutava. “Não importa, posso esperar até amanhã. Obrigada, meu Deus”. Chorei de alegria - ia poder falar, gritar, denunciar, fazer tudo o que uma voz permite fazer e que não nos damos conta no nosso dia-a-dia. Como é bom ter voz! Aquela simples operação me devolvia a liberdade.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enquanto eu dormia - parte 1

Algumas vezes abria os olhos e via sempre homens de branco perto de mim. Ao perceberem que estava acordada, eles me botavam pra dormir de novo. Outras vezes, ruídos fortes de passos no corredor me despertavam e eu via moças de uniforme azul-marinho caminhando. Eram as enfermeiras. Uma delas me chamava atenção e eu pensava como poderia fazê-la chegar até a mim. Parecia uma pessoa bondosa e confiável. Antes de iniciar o plantão, ela reunia todas as outras enfermeiras e rezavam em voz alta. Eu as acompanhava em pensamento, como fiz quando o saudoso Guido e a caçulinha fizeram uma prece pela minha recuperação.

Um dia, ao abrir os olhos, ela estava bem perto de mim. Um milagre. Cuidava de ferimentos que eu nem sequer imaginava que tinha. Doía muito. A moça percebia a minha dor e dizia que era para o meu bem, que ela precisava remover a pele morta. Não conseguindo gritar, comecei a bater com o braço engessado no ferro da cama. Ela segurou o meu braço e pediu que parasse, dizia mansamente que aquele gesto podia prejudicar a minha recuperação. Tentei me comunicar com os olhos. Tentei falar do meu horror, da minha dor, do desespero. Ela não me entendia. Fazia perguntas irrelevantes, que nada tinham a ver com o que eu queria dizer. Frustrada, voltei a bater com o braço engessado e ela perguntou de novo o que eu queria dizer. Queria que ela soubesse que os homens de branco conspiravam contra mim, que eram maus e queriam me matar. Queria lhe contar que numa ocasião acordei tossindo muito forte. Fui salva por outro homem de branco, talvez um médico, que entrou no meu box e perguntou aquele que estava ao meu lado por que uma válvula, da qual nunca vou lembrar o nome, estava desligada. Este não soube responder e o homem de branco chamou-lhe a atenção, ficou bravo. Quando a moça de uniforme chegou bem perto de mim, olhei-a nos olhos e tentei transmitir todo o meu pavor, a minha angústia. Ela foi embora, não disse nada, mas a partir daquele momento senti que me acompanhava de perto, que tinha se tornado meu anjo da guarda. Sempre que estava de plantão e via os homens de branco entrarem no meu box, ela os seguia. Um dia, quando eles acabaram de fazer mais uma maldade comigo, ouvi-a dizer com voz que mal conseguia disfarçar a irritação: “vocês só vão sossegar quando ela morrer, não é?” Graças a essa moça, sobrevivi.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O verão do adeus a Bia - parte 1

As meninas estavam excitadas. Íamos acampar em Prado, no sul da Bahia, e elas anteviam a diversão e a oportunidade de terem o pai e a mãe juntos por uns dias. Na verdade, uma semana de sonho. A alegria e o rebuliço da partida talvez tenham impedido que as meninas ouvissem quando Bia, com ar triste e desolado, disse “adeus” ao nos despedirmos dela.

Prado era tudo o que haviamos sonhado: mar morno, sol que acariciava a pele, frutas exóticas, tranquilidade e muito sorvete. Nossa rotina diária consistia de tomar o café no camping, caminhar para explorar os arredores e depois mergulhar no mar de águas calmas. Para almoçar, bastava cruzar uma pontezinha rústica que nos levava ao restaurante do camping, onde já deixávamos a comida encomendada: moqueca de peixe. Um dia, quando passávamos pela ponte, a caçulinha perguntou inocentemente: “Você viu, pai, que minhocão?” Olhamos todos para trás. Era uma cobra tomando sol.

Depois do almoço e de uma caipirinha eu me espreguiçava na rede e tirava um cochilo. As meninas voltavam ao mar com o pai. À tarde, íamos à cidade tomar sorvete, sempre de alguma fruta exótica. Numa dessas nossas idas ao centro, ainda estacionando, a caçulinha, mal contendo a ansiedade, disparou porta afora, quase sendo atingida por um carro que passava. Não sei se foi o susto, mas desde esse dia comecei a sentir uma tristeza inexplicável.

Na volta para casa, a mesma tristeza me seguia e eu dizia ao pai das meninas: “Vai devagar que estou com mau pressentimento.” Felizmente, o retorno foi tranquilo e, mais animada, tomei o avião. Fui a Lima, ponto de partida de uma viagem inesquecivel. Ia continuar minhas férias por mais uns dias, enquanto as meninas voltavam às aulas. Não imaginava que nuvens negras e agourentas se aproximavam.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A noite longa e escura

Abri os olhos e vi um homem risonho que me chamava pelo nome e dizia coisas que eu não conseguia entender. Lembro apenas que não gostava dele. Tinha a cara redonda, a cabeça achatada no alto e o cabelo liso e escuro dos paraenses. As bochechas exibiam sinais persistentes de acne. Tive medo desse homem, não sei porquê. Achei-o falso e dissimulado. Nas vezes seguintes que abri os olhos, ele estava lá, com o mesmo sorriso forçado. Aproximava-se de mim e me dava alguma coisa que me fazia adormecer, até que um dia me tiraram daquele lugar. Hoje sei que era o hospital Miguel Couto. Saí de lá no quarto dia, pela manhã.

Fui levada para uma conhecida e bem conceituada casa de saúde. Não foi fácil a transferência, porque eu tinha sofrido politraumatismo. Cheguei à casa de saúde em estado grave, indo diretamente para a UTI, onde permaneci em coma induzido. Poucos dias depois, passei por uma grande cirurgia. As expectativas não eram muito otimistas, mas reagi bem e agüentei as várias horas da intervenção. Pelas minhas contas, fui operada exatamente no dia do aniversário do meu falecido pai. Gosto de pensar que ele esteve ao meu lado, ajudando-me a superar o momento crucial da minha vida.

Depois da cirurgia, passei por alguns dos piores momentos de que tenho lembrança. Continuava na UTI e, nas poucas vezes que abria os olhos, queria me mexer, sair dali, falar, mas algo me impedia. Nos raros e breves momentos em que estava acordada, me dedicava a pensar numa estratégia para fugir daquele lugar, onde as pessoas não me tratavam bem. Sentia que minha vida estava em risco e tinha medo, muito medo. Homens de branco cochichavam, diziam coisas como “não deixa ela ficar acordada”, “não esqueça de dar o remédio pra ela dormir”. Um dia, dois desses homens de branco se aproximaram de mim e ficaram debochando, rindo da minha cara, diziam coisas horríveis a meu respeito que não devo e não quero repetir. Pegaram um pente e prenderam meu cabelo no alto da cabeça. E caíram na gargalhada. Um deles, de cabeça raspada, se aproximou de mim e perguntou: “e agora, o que faço com você?” Segurava um pano e ameaçava me sufocar, enquanto o outro se divertia com a cena. Achei que ia morrer. Talvez satisfeito com o horror que percebeu em meu olhar, o homem de cabeça raspada chegou bem perto do mim e disse: “quando você se recuperar, vamos tomar uma água de coco na praia, tá?” Durante bom tempo duvidei de que essa cena tivesse realmente acontecido. Inúmeras vezes questionei minha sanidade. Com o tempo e com a minha determinação em saber a verdade, acabei chegando a algumas conclusões, e me aproximei dos fatos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Trocando em miúdos

Acordei pensando nas cigarras. Por onde elas têm andado? Pra mim, verão de verdade tem de ter coisas como o canto das cigarras, flamboyants floridos, muita fruta e água de coco. Mas cigarras e flamboyants são imprescindíveis. Essas árvores começam a florescer no final da primavera e mantém a cor flamejante até o final de dezembro, início de janeiro. Não me lembrava que as cigarras começavam a cantar bem cedo pela manhã. Lembro-me que elas renovam o canto no final da tarde. São apenas 6horas da manhã e as ouço cantar. Volto a ter esperança no verão. Mas não é delas que vou falar.

Vou falar daquele verão de quase trinta anos atrás, quando consegui ter coragem de deixar meu marido. Aquela música martelava na minha cabeça enquanto eu separava o que ia levar comigo.

“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu”

Foi então que descobri que tinha apenas a capa do Brahms – o disco tinha sumido. A terceira sinfonia de Brahms havia desaparecido e a culpa era minha, que não a protegi. Nunca soube que fim meu marido deu àquela sinfonia e fiquei anos sem ouvi-la.

Precisava ter forças e correr contra o tempo. Ele havia saído para trabalhar bem cedo e eu tinha apenas algumas horas para empacotar tudo, até a Kombi chegar. Ia deixar toda a mobília e levar apenas objetos pessoais, minhas plantas favoritas, além dos discos e livros.

“Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças”

Logo as meninas acordaram e, assustadas com a bagunça, perguntavam agoniadas: para onde vamos? O que está acontecendo? Não quero ir pra lugar nenhum. Meu advogado me orientara a fazer a mudança daquele jeito, sorrateiramente, e eu tinha pensado apenas nas coisas práticas. Não me ocorreu que as meninas poderiam reagir mal à separação. Era especialmente por elas que eu estava me separando. A nossa vida em comum tinha se transformado num inferno e elas começavam a sofrer as conseqüências, apresentando sintomas preocupantes.

“Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter”

Não sei como superei todos os obstáculos e consegui sair daquele lugar. As meninas choravam. A empregada que nos acompanhava estava atônita. Não derramei uma única lágrima.

“Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado”

Tinha a meu favor a juventude. Quando se é jovem é fácil ter esperança e acreditar no futuro. Eu sabia que ia dar tudo certo e isso me confortava. Sabia que minha vida, uma vida de verdade, estava começando naquele momento.

“Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.”

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Quase um ano...

Foi há quase um ano que uma noite longa e escura desabou sobre mim, justamente quando eu vivia um dos períodos mais lindos da minha vida. A vida que tinha me presenteado com um neto, em junho, e agora eu ia morrer?

Naquele dia, que prefiro não dizer, tinha saído para ir ao cinema. Fui ver dois filmes muito bons, e um deles concorreria ao Oscar. Havia aceitado o convite da Cacilda para passarmos um dia juntas. Era verão, como agora. Combinamos de nos encontrar no Botafogo Praia Shopping, onde almoçamos. Lembro-em muito bem que foi no Viena, mas não lembro de jeito nenhum da blusa que estava usando. Saímos do shopping e fomos ao Estação Botafogo ver o filme que a Cacilda tanto queria. O combinado era que eu assistiria ao filme dela e ela o meu. Do Botafogo fomos ao Espaço Unibanco ver "O Leitor", e eu saí do cinema com o filme na cabeça. Queria ir logo pra casa, pois já havia anoitecido, mas Cacilda quis voltar ao Shopping e lá fomos nós. Ela ia comprar qualquer coisa, que acabou não comprando. Comprei eu. Tomamos um café e, quase na saída, resolvi levar duas molduras. Fomos caminhando até o metrô. Lá eu disse tchau pra Cacilda, quando ela descia as escadas. Só me lembro disso. Não me lembro como aconteceu, só sei que estava na calçada dando aquele tchau. No momento seguinte, estava debaixo de um caminhão. Uma moça morena se abaixou e me disse para ficar calma, que ela havia chamado a ambulância. Perguntei: vou morrer? Ela me disse que não, e acabei saindo dali com essa certeza que deve ter salvado a minha vida.

Hoje, passei de taxi pelo local onde tudo aconteceu. Reparei que entre a calçada e o meio-fio o espaço é reduzidíssimo. Então o que aconteceu? Sempre tive medo de atravessar a rua fora do sinal. Teria feito isso nesse dia? Por mais que me esforce não consigo lembrar, mas recordo meus pensamentos enquanto estava sendo atropelada. Eu me revoltei e reclamava: "Então é isso? Minha vida termina aqui? Justo agora que estou feliz e cuidando da minha saúde? De que adiantou ter largado o cigarro e estar fazendo regime? Socorro, Cacilda, me tire daqui. Volte, Cacilda, socorro! Isso não está acontecendo, não está acontecendo, não está acontecendo...". É incrível que eu tenha pensando em tudo isso em tão curto espaço de tempo, mas juro que pensei e me lembro perfeitamente, assim como me lembro das perguntas que me fizeram dentro da ambulância. Pedi que fossem buscar a minha bolsa e minhas molduras que estavam debaixo do caminhão. Reclamei quando cortaram minha roupa, destruindo o soutien de que eu gostava tanto. Me botaram pra dormir um sono pesado e longo do qual falarei outro dia.

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...