domingo, 18 de novembro de 2018

TEREZINHA - PARTE FINAL


 
("Almoça com Pedro, janta com Pedro, dorme com Pedro e não sabe quem é Pedro" 
(Lina Spallato, minha avó)

Mas quem era Terezinha? Era uma espécie de Gata Borralheira – sim, elas existem – que mamãe salvou da bruxa má. Terezinha vivia ao lado da nossa casa e era muito maltratada pelo que parecia ser sua patroa ou dona. Não sabíamos e nunca se soube que idade teria, mas o que víamos nos horrorizava. A menina, pequena e franzina, recebia tratamento pior do que um cachorro vira-lata. Vivia apenas de calcinha, fizesse frio ou não, e estava sempre no quintal, lavando uma pilha de louças numa pia. Altas horas da noite, com chuva torrencial, a menina estava lá no quintal lavando louça, enquanto a vizinha recebia seus amigos. Terezinha era a empregada daquela família de pai, mãe e dois filhos. As crianças, filhas da vizinha, eram bem vestidas e alimentadas, em contraste flagrante com Terezinha. Aquela maldade deixava minha mãe doente de indignação, mas naquele tempo ela não podia fazer nada legalmente e denúncias caíam no vazio. Um dia, mamãe se aproximou da cerca e perguntou se a senhora lhe daria Terezinha para criar. Ela respondeu que não e falou muito mal da menina. Disse que era uma menina de parte com o Cão. O sofrimento diário de Terezinha foi causando tanta raiva na mamãe que seu sangue meridional começou a ferver. Tornou-se uma obsessão para ela arrancar Terezinha daquela casa. E desenvolveu um plano. 

Esperou que sua amiga, Nair, viesse visitá-la. Naquele tempo, telefone era coisa rara, mas a gente sabia que Nair apareceria, como costumava fazer, pelo menos uma vez por mês. E quando Nair chegou minha mãe contou-lhe o plano. Ela ia sequestrar Terezinha num dia em que a família saísse e a deixasse sozinha. Mamãe já tinha conversado com Terezinha e perguntado se ela queria fugir dali. A menina logo respondeu aflita e chorando que sim. Mamãe pediu-lhe segredo. A outra parte do plano era combinar com a Nair quando ela deveria voltar para levar Terezinha. Tudo deveria ser rápido e coordenado. A família costumava se ausentar aos domingos e era nesse dia que o plano entraria em ação. 


No domingo combinado, Nair chegou cedo em casa e mamãe ficou esperando a família sair. Ela se aproximou da cerca e abriu espaço no arame para Terezinha passar. Correu com ela para dentro de casa e quando a vimos de perto nosso espanto cresceu. O cabelo desgrenhado parecia nunca ter visto um pente. Estava suja e fedorenta, tinha o corpo coberto de equimoses das muitas surras que lhe davam e queimaduras de pontas de cigarro ainda inflamadas. Nair chorou de tristeza e a abraçou com carinho. Imediatamente a adotou como filha. Terezinha parecia catatônica, não reagia. Tinha os olhos arregalados e incrédulos. Levaram-na ao banheiro e deram-lhe banho. Custaram a tirar toda a crosta que lhe cobria o corpo e tiveram que usar o sabonete (não havia shampoo) várias vezes, até tirar toda a sujeira do cabelo, e depois tiveram um trabalho enorme para desembaraçar, até que desistiram e acabaram cortando-o bem curto, para que Terezinha não sofresse mais. Não que ela chorasse ou reclamasse, mas se lhe notava a dor nos olhos. Ao sair do banheiro, já limpa e vestida, parecia outra menina, mas ainda estava assustada. Era linda, morena e de traços delicados. Tinha sotaque nordestino e era tudo que sabíamos dela. Mamãe pediu que Nair fosse embora correndo com ela. E assim foi, para alívio de todos.


Horas depois, a vizinha voltou da rua e gritou: “Terezinha, Terezinha!” Ouvíamos tudo escondidas dentro de casa. Claro que Terezinha não atendeu e aí a vizinha veio até a cerca e chamou mamãe. Perguntou-lhe se tinha visto Terezinha e mamãe, na maior calma, respondeu que não fazia ideia de onde ela poderia estar. A mulher a olhou desconfiada, mas não disse nada. Com o tempo, ela entendeu que mamãe tinha-lhe “roubado” a escrava, mas nunca a confrontou. E ficou por isso mesmo. 


Nair levou a menina ao médico para exames e ficou constatada a debilidade física de Terezinha. Aparentava ter uns 5 anos, mas o médico disse que deveria ter pelo menos 8. Nair passou maus bocados, porque o médico suspeitou que era ela quem havia infligido tratamento tão desumano em Terezinha. E receitou-lhe vitaminas. Em pouco tempo, Terezinha ganhou peso e cresceu. Nair a registrou como filha, deu-lhe o nome de Terezinha de Jesus e sobrenome também. Não podia trazê-la, obviamente, à nossa casa e talvez isso nos fez perder contato com Terezinha, até que, anos depois, quando nos mudamos, ela veio nos visitar. E foi então que percebi que era mais velha do que eu, já era uma adolescente, enquanto eu ainda era criança. Os dias que passou em nossa casa foram poucos e preciosos, mas foram dias de aprendizado, dias em que a semente da rebeldia começou a germinar em mim.
Com o tempo, Terezinha se distanciou, até mesmo da Nair que a tratava como filha. Nunca a vi demonstrar gratidão com a minha mãe, que lhe salvou a vida. Terezinha não fora criada para amar ninguém, porque só havia recebido maus tratos e desamor nos primeiros anos em que as crianças dependem do amor para se desenvolverem emocionalmente. Soubemos que visitava Nair ocasionalmente. Também soubemos que se casou e teve filhos. Depois, mais nada, nem um fiapo de notícia. Pouco a pouco, foi desaparecendo na bruma densa e misteriosa que parecia ter-lhe cercado a vida inteira, desde sua origem.

TEREZINHA - PRIMEIRA PARTE


“A realidade pode ser mais incrível que a ficção” (pensamento extraído do livro “Santa Evita”, de Tomás Eloy Martinez)

Ainda me lembro, como se fosse hoje, de quando Terezinha foi passar uns dias lá em casa. Ela seguiu pacientemente toda a rotina dura que mamãe nos impunha, sem reclamar: almoço às 12 em ponto, estivéssemos ou não com fome, lanche às 14h, composto de mate e pão com manteiga, e quem nos avisava era o ruído de um avião que passava naquela hora, e jantar às 18h, quando mamãe ouvia no rádio a “Hora da Ave Maria”, depois de deixar um copo d’água ao lado do aparelho, para nos proteger de todo o mal. Depois, seguia-se “Pausa para Meditação”, programa de Júlio Louzada, em que o radialista apresentava casos reais de ouvintes que lhe escreviam contando seus problemas e conflitos, e terminavam dizendo: “Me aconselha, seu Júlio Louzada”. Teve até uma marchinha de carnaval fazendo troça, gíria da época: “A mulher do meu maior amigo me manda bilhete todo dia, desde que me viu, ficou apaixonada, me aconselha, seu Júlio Louzada.” Aqueles não eram tempos muito felizes e peço ao leitor que me permita divagar um pouco. Não fossem os sambas de breque, como se chamavam, a vida seria uma chatice infindável. Graças a um dos meus tios, muito bem-humorado, conheci alguns desses sambas e virei fã do Moreira da Silva “Etelvina, acertei no milhar”. Mas eu gostava também do “Parei meu carro na Praça Paris, eu e a Conceição, de repente ouvi um boa noite, eram o Cosme e Damião, que destacaram o papel amarelo, que situação!, é que distraidamente eu estacionei na contramão...” Cosme e Damião era como o povo se referia à dupla de policiais que patrulhava a cidade e “papel amarelo” era a multa de trânsito.

Antes do jantar, podíamos ouvir a novela “Jerônimo, o herói do sertão” cuja abertura era uma música assim: “Quem passar pelo sertão vai ouvir alguém cantar o herói desta canção que eu venho aqui cantar...” E a gente adorava escutar o Moleque Saci avisando Jerônimo do risco que corria com o Caveira (“Chumbinho, apresente seu relatório”): “Cuidado, Jerônimo!” https://www.youtube.com/watch?v=WtEaFIV8O2M
Era mamãe quem controlava o rádio com mão de ferro. Era sempre ela quem determinava o que se podia ouvir. Alguns programas a gente até gostava e acompanhava com atenção, como as novelas estreladas pela mocinha Dayse Lúcidi e o galã Roberto Fayssal. Eram maravilhosas e, se não me engano, eram levadas ao ar nos fins de semana, pela manhã. Também gostávamos de ouvir, arrepiadas de medo, o Almirante, em que uma voz cavernosa ameaçava na abertura do programa: “Incrível, fantástico, extraordinário! Você não acredita no sobrenatural? Então ouça!” Mas esse programa a gente escutava lá da cama, porque mamãe nos punha pra dormir e só ela ficava ao lado do rádio. Eu me pergunto até hoje por que as crianças, de todas as gerações, gostam tanto de programas e filmes de terror?

Terezinha ouvia tudo calada, mas uma hora se rebelou. Depois do programa do Júlio Louzada, mamãe deixava o rádio na mesma estação para ouvir “A Hora da Saudade”, um programa musical que tinha na abertura o cantor Augusto Calheiros cantando o poema “Ave Maria”: “Cai a tarde tristonha e serena em macio e suave langor, despertando no meu coração a saudade do primeiro amor...” Ouvir aquela valsa, embora bonita e poética, dava uma tristeza danada, uma vontade de sair correndo pelo mundo afora e fugir para sempre. Terezinha deve ter sentido o mesmo, porque depois da segunda música, perguntou de sopetão: “Vocês não ouvem “A Hora do Rock?" Nós nem imaginávamos o que era aquilo até ela nos explicar. Pediu permissão à mamãe para sintonizar na rádio Mayrinck Veiga o programa do Isaac Zaltman. Sem graça, mamãe consentiu e foi quando ela perdeu o domínio do rádio. “A Hora do Rock” passou a ser a nossa hora e tudo mudaria desde então. Acabava a “Hora da Ave Maria” e a gente pimba!, mudava para o programa, que já começava arrepiando com Bill Halley e seus Cometas cantando: “One-two-three o’clock four o’clock rock, five-six-seven o’clock eight o’clock rock...” E foi Terezinha quem nos ensinou a dançar o rock’n roll. Yayyy!

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

UM PAÍS INFELIZ E CHEIO DE GENTE ODIOSA

Talvez a coisa mais chocante que li na minha vida - e olha que li um monte de livros sobre campos de concentração - foram os comentários dirigidos à propaganda política de Haddad, em que Amelinha, barbaramente torturada pelo desgraçado do Ustra, descreve em detalhes tudo o que sofreu e conta como o maníaco ainda levou seus filhos para verem ela e o marido sujos, ensanguentados e vomitados. A filha pequena, quando a viu, perguntou: "Mãe, por que você está azul?" Os comentários são terríveis, monstruosos, inimagináveis: "ela fez por merecer", "santinha é que não era"... e por aí vai. 

A gente sabe que uma parcela da sociedade é formada por monstros, ou tantas desgraças não aconteceriam no mundo. Desde criancinhas nossos pais avisavam para tomar cuidado com estranhos. A gente sabe que a maldade existe. Mas estávamos longe de imaginar que cidadãos comuns, aparentemente do bem - aquela senhora, por exemplo, tão gentil -, fossem monstros. Dói saber que o país tantas vezes exaltado como acolhedor, de gente feliz e amiga não é tão acolhedor e amigo assim (que digam os venezuelanos, haitianos, sírios...). Não, nossa gente não é feliz. A gente até achou que aquelas senhoras de camisa da CBF, portando cartazes, eram apenas ridículas, que aqueles fortões de camisa verde e amarela não eram tão perigosos assim. Mas são, agora sabemos que eles dão medo. E dá medo também sair à rua, dá medo frequentar reuniões sociais, dá medo tentar fazer amigos.

Nunca mais seremos como antes. Da caixa de pandora nem a esperança restou.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

VIDA NA ROÇA - CAPRICHOS DA NATUREZA

Olhei da varanda para o jardim e notei que os tomates já estavam amadurecidos. Pois é, deu o maior tomateiro no jardim, perto da buganvílea, e já colhi uns dois quilos de tomate de lá - saborosíssimos e o melhor: totalmente orgânicos. No vaso de planta perto, tem um pé de tomatinho cereja e eu vou lá de vez em quando colher. Hum, deliciosos! Hoje mesmo comi dois, mas vem mais aí. Depois de colher os tomates, fui ao canteiro das roseiras colher....espinafre. A gente já tentou dar um indireta para o espinafre, que seu lugar é na horta, mas ele não faz caso. Não quer "espinafrar" na horta e é um direito seu. Todo ano, nasce de montão ao lado das roseiras. E não arreda pé. Fui lá e colhi uma ramada bem verdinha e exuberante. Vou fazer creme de espinafre...yummy, yummy. Planta aqui em casa nasce onde quer. Tô nem aí.
E hoje cedo fui ao quintal colher framboesas. É a estação delas. E aí notei que logo, logo vou ter amoras. O pé de jaboticaba está todo florido, assim como o pessegueiro. Mal posso esperar setembro chegar.

sábado, 18 de agosto de 2018

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE CHIQUINHO E SUA MÃE DESALMADA

Hoje acordei pensando no Chiquinho e no seu destino cruel, não sei se pela turbulência do momento, devido à crise que atravessamos, ou pelas maldades que vejo publicadas nas redes sociais. Chiquinho coloriu nossas vidas de criança e foi muito amado. Quis o destino, porém, que tivesse uma mãe desalmada. Mas antes falarei das condições e circunstâncias de tão malfadada sorte.
Nasci, me criei, passei minha adolescência e grande parte da minha vida adulta num subúrbio carioca. Éramos os chamados roceiros. Do centro da cidade “para trás”, ou seja, para a zona norte da cidade, não existíamos ou éramos ridicularizados pelos “granfinos” da zona sul, porque vivíamos praticamente no campo, em pequenas chácaras. Nossas casas eram “simples com cadeiras nas calçadas e na fachada escrita em cima que era um lar”, como na música de Garoto. Não faz muito tempo, li um artigo do Carlos Saldanha que, para quem não conhece, é um famoso diretor de cinema e produtor de filmes de animação como “Rio”, “A era do gelo”, etc. Pois bem, Saldanha nasceu em Marechal Hermes e ele conta como foi morar num subúrbio da zona norte num interessante artigo publicado na revista Época (quem se interessar, procure no Google). A cidade partida, da qual fala Zuenir Ventura em seu livro, sempre existiu, assim como sempre houve hostilidade do pessoal da zona sul contra a zona norte, mas naquele tempo tudo se resumia apenas à zombaria, e me parece que vigora até hoje, porque a estupidez humana é infinita. Foi meu avô, um abastado comerciante português, quem comprou uma chácara e levou a família, no início do século passado, para a zona norte. Foi lá que minha mãe e meus tios, eu, meus irmãos e meus primos todos nascemos. Foi lá que “crescemos e nos multiplicamos”.
Nossos vizinhos vinham de várias partes do país e do mundo, meu vizinho de baixo era mineiro e ele gostava de botar na vitrola uma música que dizia assim “quem pensar que o mineiro é bobo, vai cair na boca do lobo”. Seu Ítalo, como o chamávamos, foi o primeiro a comprar um aparelho de TV. À noite, ele abria a porta da sala e deixava-nos ver os programas, do lado de fora do portão, onde nos aglomerávamos diante daquela maravilha. Aos domingos, a entrada era franqueada à garotada para vermos o teatrinho Troll, com a princesa Norma Blum, e seu Ítalo generosamente nos oferecia frutas. Era o vizinho mais rico da rua, mas muito ciumento. Não deixava a mulher dele, uma senhora que passou a se vestir de negro depois que seu pai, com quem eu gostava muito de conversar, morreu numa manhã, e eu soube quando voltei da escola. Naquele tempo, velava-se o defunto nas casas, que se enchiam de vizinhos. Dona Edith, mulher do seu Ítalo, não ia à rua nunca, exceto em alguns passeios no Studebaker reluzente do marido. Por isso, era eu quem fazia as compras para ela todo dia. Dona Edith me dava uma listinha e, na entrega das compras, um trocadinho, que eu adorava, porque com aquele dinheiro podia comprar as figurinhas do álbum de cinema ou uma lata de leite condensado, que eu bebia devagarinho, às escondidas dos meus irmãos. O vizinho de cima era do interior do estado do Rio de Janeiro, eram os parentes da Vitória e Ledinha. Na casa deles tinha um pé de cajá, fruta que me enche a boca de água só de lembrar, um cajueiro e um pé de abiu, fruta em formato de amêndoa que nós pegávamos do pé quando estava bem amarelinha e nos deixava uma cola nos lábios, motivo de muitas brincadeiras. Mais adiante, subindo a rua, havia alemães e eu frequentava a casa dos Ballreich, originários de Essen, na Alemanha. Foi por causa deles que conheci a culinária e os costumes do país e também comecei a aprender alemão, língua que afinal não segui estudando, porque o inglês era mais legal e eu precisava dele para cantar as músicas que tocavam no rádio. “One, two, three, four rock around the clock, five, six, seven...” E enquanto aprendia inglês, eu cantava a música que mais fazia sucesso na época, “Jambalaya”. Eu imitava perfeitamente a Brenda Lee. Quando cantei a primeira vez no pátio da escola, a garotada ficou doida. As meninas passaram a me olhar com melhores olhos e os meninos com mais interesse. Mas graças a Brenda Lee descobri, ainda muito criança, que não fora feita para o estrelato. Era um saco ter de cantar toda hora “Jambalaya a-crawfish pie, a-file gumbo, ‘cause tonight I’m gonna see my ma cher amio...” Havia poloneses - como minha amiga Jeannette Iablonski, que se mataria anos depois, ateando fogo às vestes, por causa de um amor não correspondido - e italianos. Ainda me lembro dos rapazes italianos mais legais, Sergio, Domenico e Vincenzo, que me levavam a passear de Vespa pelo bairro, sem o conhecimento da minha mãe, claro, pois ela me mataria se soubesse. E tinha minhas amigas italianas, como a Mirella e a Brunella, de quem sou amiga até hoje. As músicas italianas faziam sucesso nas rádios, como “Datemi un martello”, da Rita Pavone, a romântica “Io che amo solo te”, do Sergio Endrigo e "Il Mondo". “Il mondo soltanto adesso io ti guardo, nel tuo silenzio io mi perdo e sono niente accanto a te...”O armazém, onde minha mãe fazia as compras do mês, era de um português, seu Belmiro, um senhor baixo e gordo, que gostava de agradar a freguesia. Quando minha mãe lhe pedia para fazer desconto, ele rapidamente consentia e na hora de somar, o que ele fazia de cabeça, dizia assim: “mais 7, mais, 2, mais 4... e lá vai 8, mas pra senhora vai 7”. No bairro ao lado, viviam algumas famílias espanholas, como os Ponce de Leon. Esse era meu universo e nele estava a casa da minha tia, uma pequena chácara, para onde íamos todos os dias, depois dos afazeres escolares, para brincar com os primos.

 A tia criava galinhas e aí um belo dia teve a ideia de criar porcos também. Não sei como começou, só me lembro que no chiqueiro que ela mandou construir havia uma porca enorme, barriguda e que daquela barriga saiu um monte de porquinhos, todos lindos e rosados, que nós quisemos logo pegar para brincar. Mas não, a tia não deixou, porque ela os alimentaria e os deixaria crescer para depois matá-los e comer a carne deles. Estávamos longe de imaginar os planos tenebrosos da tia e sempre que chegávamos a casa dela íamos correndo ver os porquinhos mamar. Nossa atenção passou a se concentrar num deles, o menor de todos, que nunca conseguia uma teta e ficava jogado num canto, emagrecendo a olhos vistos. Apontamos o porquinho para a tia e ela passou a prestar atenção.
Naquela época, poucas crianças tinham animais de estimação. Minha mãe dizia que já tinha trabalho demais para cuidar de quatro filhos. Quando estava para se casar, meu tio ganhou de presente um cachorrinho e pediu minha mãe para cuidar dele. Eu me apaixonei pelo cãozinho e aquela foi a primeira vez que tive em casa um animal de estimação, mas foi por pouco tempo. Certa vez, quando ia para a escola e já estava quase chegando, olhei para trás e, para minha surpresa, o cãozinho havia me acompanhado. Parei sem saber o que fazer. E aí me ocorreu uma ideia. Toquei a campainha de uma casa, a senhora veio atender o portão e eu lhe expliquei o que acontecera. Ela me olhou com ternura e disse que fosse tranquila para a escola. Ela cuidaria dele para mim. Ao voltar, parei na casa para pegá-lo e a senhora me contou que uma outra pessoa havia estado lá perguntando por ele. Quis levá-lo, mas ela não deixou, pois havia prometido que só o entregaria a mim. Foi a única experiência que tive com um pet até então, mas estava prestes a ter outra, muito mais intensa.
Um dia, quando voltava da escola, vi minha prima empurrando um carrinho de bebê. Aproximei-me, pensando tratar-se de uma nova boneca, pois ela as tinha aos montes, cada uma mais linda que a outra, mas todas ficavam guardadas em suas caixas originais num armário, pois eram de louça e a tia tinha medo que minha prima as quebrasse. Nunca vi minha prima brincar com elas. Uma vez, a tia quis nos mostrar a mais nova boneca que minha prima ganhara no Natal e, ao pegá-la, ela escorregou da caixa e caiu, espatifando-se no chão, para horror de todos nós. Minha tia ficou em estado de choque, porque era uma boneca caríssima e eu fiquei muda, estática, sinceramente de coração partido. Mas o que estava no carrinho de bebê que a prima empurrava não era uma boneca - era um porquinho e ele estava todo perfumado e vestido tal qual um bebê, com um laço de fita no pescoço. A prima explicou que a tia havia decidido tirar o porquinho do chiqueiro e alimentá-lo. Minha prima então decidiu dar-lhe um banho e cuidar dele como se fosse um bebê. Parecia mesmo e ela passou a chamá-lo de Chiquinho. Num instante, Chiquinho se tornou o queridinho da molecada, a coqueluche, como se dizia na época, e as brigas entre nós começaram. Eu puxava o saco da prima para ela me deixar pegar o Chiquinho no colo um pouco e brincar com ele. Se não dava certo, saía briga e ficávamos de mal. Todo mundo passou a disputar o Chiquinho, que foi ficando mimado e muito levado. Entrava na casa e fazia cocô para todo lado. A tia foi ficando nervosa com nossas brigas e com o comportamento do Chiquinho. Começou a ameaçar tirá-lo de nós e devolvê-lo ao chiqueiro. Em pouco tempo, Chiquinho cresceu e já não parecia mais um bebê. Já não ficava quietinho no colo, queria o chão para correr e brincar. Chiquinho revelou-se um grande companheiro de brincadeiras. Seguia-nos para todo lado, mas de vez em quando fugia e ia se esconder na casa da tia. Entrava sem que ela o notasse e fazia cocô nos lugares mais inusitados, deixando a tia muito zangada. Suas diabruras acabaram irritando demais a tia, que mal tinha tempo para se coçar. Foi aí que a desgraça aconteceu.
Um dia, ao voltar da escola, encontrei a prima no portão, à minha espera, chorando. Aproximei-me assustada e ela me contou. A tia tirou-lhe o Chiquinho, que dormia com ela, durante a noite e o levou de volta ao chiqueiro. Ao acordar, ela perguntou pelo porquinho e a tia lhe disse a verdade. Ela foi correndo ao chiqueiro e não o viu lá. As duas voltaram ao chiqueiro e puseram-se a buscá-lo por todo lado e só então se deram conta que a própria mãe, talvez com a ajuda dos irmãos, o haviam comido durante a noite. Dele só sobraram os ossos num canto do chiqueiro. A prima chorava copiosamente e eu me juntei a ela. Aos poucos, os outros primos chegaram e todos choramos. A tia mal nos olhava, parecia envergonhada e abatida. Minha prima a culpava pela tragédia e aí, um dia, a tia resolveu acabar com o chiqueiro. Vendeu a porca e os porquinhos. Desistiu da ideia de criá-los para comer e nos disse a razão: “eu não poderia comer uma mãe tão desalmada”.
Depois de vender a porca e os porquinhos, a tia trabalhou a terra onde ficava o chiqueiro e fez uma horta ali. Durante algum tempo, nos emocionávamos quando olhávamos o local onde ficava o chiqueiro, mas aos poucos, como costuma acontecer com as crianças, fomos nos acostumando com a ausência do Chiquinho e eu até acho que meus primos podem ter se esquecido dele. Eu não. Era a segunda perda que eu sofria de um animalzinho querido. Pouco a pouco, fomos buscando outras formas de diversão – havia muitas - e a primeira delas foi voltar para os braços fartos e generosos do velho tamarindeiro, que desciam em ramas rendilhadas até o chão, como a convidar a abrigar-nos em seus galhos - nosso lugar preferido de jogos e brincadeiras. Hoje em dia, quando penso no velho tamarindeiro, sinto um nó na garganta e vontade de chorar, porque sei que pessoas insensíveis não o reverenciaram, não se renderam diante de sua majestade e o derrubaram, assim que a casa da tia foi vendida anos depois. Quanto ao Chiquinho, durante todos esses anos nunca o esqueci e é em nome dessa lembrança triste e nostálgica, grande companheira e formadora do meu caráter e sentimentos, que escrevi esta historieta.

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...