domingo, 18 de novembro de 2018

TEREZINHA - PARTE FINAL


 
("Almoça com Pedro, janta com Pedro, dorme com Pedro e não sabe quem é Pedro" 
(Lina Spallato, minha avó)

Mas quem era Terezinha? Era uma espécie de Gata Borralheira – sim, elas existem – que mamãe salvou da bruxa má. Terezinha vivia ao lado da nossa casa e era muito maltratada pelo que parecia ser sua patroa ou dona. Não sabíamos e nunca se soube que idade teria, mas o que víamos nos horrorizava. A menina, pequena e franzina, recebia tratamento pior do que um cachorro vira-lata. Vivia apenas de calcinha, fizesse frio ou não, e estava sempre no quintal, lavando uma pilha de louças numa pia. Altas horas da noite, com chuva torrencial, a menina estava lá no quintal lavando louça, enquanto a vizinha recebia seus amigos. Terezinha era a empregada daquela família de pai, mãe e dois filhos. As crianças, filhas da vizinha, eram bem vestidas e alimentadas, em contraste flagrante com Terezinha. Aquela maldade deixava minha mãe doente de indignação, mas naquele tempo ela não podia fazer nada legalmente e denúncias caíam no vazio. Um dia, mamãe se aproximou da cerca e perguntou se a senhora lhe daria Terezinha para criar. Ela respondeu que não e falou muito mal da menina. Disse que era uma menina de parte com o Cão. O sofrimento diário de Terezinha foi causando tanta raiva na mamãe que seu sangue meridional começou a ferver. Tornou-se uma obsessão para ela arrancar Terezinha daquela casa. E desenvolveu um plano. 

Esperou que sua amiga, Nair, viesse visitá-la. Naquele tempo, telefone era coisa rara, mas a gente sabia que Nair apareceria, como costumava fazer, pelo menos uma vez por mês. E quando Nair chegou minha mãe contou-lhe o plano. Ela ia sequestrar Terezinha num dia em que a família saísse e a deixasse sozinha. Mamãe já tinha conversado com Terezinha e perguntado se ela queria fugir dali. A menina logo respondeu aflita e chorando que sim. Mamãe pediu-lhe segredo. A outra parte do plano era combinar com a Nair quando ela deveria voltar para levar Terezinha. Tudo deveria ser rápido e coordenado. A família costumava se ausentar aos domingos e era nesse dia que o plano entraria em ação. 


No domingo combinado, Nair chegou cedo em casa e mamãe ficou esperando a família sair. Ela se aproximou da cerca e abriu espaço no arame para Terezinha passar. Correu com ela para dentro de casa e quando a vimos de perto nosso espanto cresceu. O cabelo desgrenhado parecia nunca ter visto um pente. Estava suja e fedorenta, tinha o corpo coberto de equimoses das muitas surras que lhe davam e queimaduras de pontas de cigarro ainda inflamadas. Nair chorou de tristeza e a abraçou com carinho. Imediatamente a adotou como filha. Terezinha parecia catatônica, não reagia. Tinha os olhos arregalados e incrédulos. Levaram-na ao banheiro e deram-lhe banho. Custaram a tirar toda a crosta que lhe cobria o corpo e tiveram que usar o sabonete (não havia shampoo) várias vezes, até tirar toda a sujeira do cabelo, e depois tiveram um trabalho enorme para desembaraçar, até que desistiram e acabaram cortando-o bem curto, para que Terezinha não sofresse mais. Não que ela chorasse ou reclamasse, mas se lhe notava a dor nos olhos. Ao sair do banheiro, já limpa e vestida, parecia outra menina, mas ainda estava assustada. Era linda, morena e de traços delicados. Tinha sotaque nordestino e era tudo que sabíamos dela. Mamãe pediu que Nair fosse embora correndo com ela. E assim foi, para alívio de todos.


Horas depois, a vizinha voltou da rua e gritou: “Terezinha, Terezinha!” Ouvíamos tudo escondidas dentro de casa. Claro que Terezinha não atendeu e aí a vizinha veio até a cerca e chamou mamãe. Perguntou-lhe se tinha visto Terezinha e mamãe, na maior calma, respondeu que não fazia ideia de onde ela poderia estar. A mulher a olhou desconfiada, mas não disse nada. Com o tempo, ela entendeu que mamãe tinha-lhe “roubado” a escrava, mas nunca a confrontou. E ficou por isso mesmo. 


Nair levou a menina ao médico para exames e ficou constatada a debilidade física de Terezinha. Aparentava ter uns 5 anos, mas o médico disse que deveria ter pelo menos 8. Nair passou maus bocados, porque o médico suspeitou que era ela quem havia infligido tratamento tão desumano em Terezinha. E receitou-lhe vitaminas. Em pouco tempo, Terezinha ganhou peso e cresceu. Nair a registrou como filha, deu-lhe o nome de Terezinha de Jesus e sobrenome também. Não podia trazê-la, obviamente, à nossa casa e talvez isso nos fez perder contato com Terezinha, até que, anos depois, quando nos mudamos, ela veio nos visitar. E foi então que percebi que era mais velha do que eu, já era uma adolescente, enquanto eu ainda era criança. Os dias que passou em nossa casa foram poucos e preciosos, mas foram dias de aprendizado, dias em que a semente da rebeldia começou a germinar em mim.
Com o tempo, Terezinha se distanciou, até mesmo da Nair que a tratava como filha. Nunca a vi demonstrar gratidão com a minha mãe, que lhe salvou a vida. Terezinha não fora criada para amar ninguém, porque só havia recebido maus tratos e desamor nos primeiros anos em que as crianças dependem do amor para se desenvolverem emocionalmente. Soubemos que visitava Nair ocasionalmente. Também soubemos que se casou e teve filhos. Depois, mais nada, nem um fiapo de notícia. Pouco a pouco, foi desaparecendo na bruma densa e misteriosa que parecia ter-lhe cercado a vida inteira, desde sua origem.

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