domingo, 18 de novembro de 2018

TEREZINHA - PRIMEIRA PARTE


“A realidade pode ser mais incrível que a ficção” (pensamento extraído do livro “Santa Evita”, de Tomás Eloy Martinez)

Ainda me lembro, como se fosse hoje, de quando Terezinha foi passar uns dias lá em casa. Ela seguiu pacientemente toda a rotina dura que mamãe nos impunha, sem reclamar: almoço às 12 em ponto, estivéssemos ou não com fome, lanche às 14h, composto de mate e pão com manteiga, e quem nos avisava era o ruído de um avião que passava naquela hora, e jantar às 18h, quando mamãe ouvia no rádio a “Hora da Ave Maria”, depois de deixar um copo d’água ao lado do aparelho, para nos proteger de todo o mal. Depois, seguia-se “Pausa para Meditação”, programa de Júlio Louzada, em que o radialista apresentava casos reais de ouvintes que lhe escreviam contando seus problemas e conflitos, e terminavam dizendo: “Me aconselha, seu Júlio Louzada”. Teve até uma marchinha de carnaval fazendo troça, gíria da época: “A mulher do meu maior amigo me manda bilhete todo dia, desde que me viu, ficou apaixonada, me aconselha, seu Júlio Louzada.” Aqueles não eram tempos muito felizes e peço ao leitor que me permita divagar um pouco. Não fossem os sambas de breque, como se chamavam, a vida seria uma chatice infindável. Graças a um dos meus tios, muito bem-humorado, conheci alguns desses sambas e virei fã do Moreira da Silva “Etelvina, acertei no milhar”. Mas eu gostava também do “Parei meu carro na Praça Paris, eu e a Conceição, de repente ouvi um boa noite, eram o Cosme e Damião, que destacaram o papel amarelo, que situação!, é que distraidamente eu estacionei na contramão...” Cosme e Damião era como o povo se referia à dupla de policiais que patrulhava a cidade e “papel amarelo” era a multa de trânsito.

Antes do jantar, podíamos ouvir a novela “Jerônimo, o herói do sertão” cuja abertura era uma música assim: “Quem passar pelo sertão vai ouvir alguém cantar o herói desta canção que eu venho aqui cantar...” E a gente adorava escutar o Moleque Saci avisando Jerônimo do risco que corria com o Caveira (“Chumbinho, apresente seu relatório”): “Cuidado, Jerônimo!” https://www.youtube.com/watch?v=WtEaFIV8O2M
Era mamãe quem controlava o rádio com mão de ferro. Era sempre ela quem determinava o que se podia ouvir. Alguns programas a gente até gostava e acompanhava com atenção, como as novelas estreladas pela mocinha Dayse Lúcidi e o galã Roberto Fayssal. Eram maravilhosas e, se não me engano, eram levadas ao ar nos fins de semana, pela manhã. Também gostávamos de ouvir, arrepiadas de medo, o Almirante, em que uma voz cavernosa ameaçava na abertura do programa: “Incrível, fantástico, extraordinário! Você não acredita no sobrenatural? Então ouça!” Mas esse programa a gente escutava lá da cama, porque mamãe nos punha pra dormir e só ela ficava ao lado do rádio. Eu me pergunto até hoje por que as crianças, de todas as gerações, gostam tanto de programas e filmes de terror?

Terezinha ouvia tudo calada, mas uma hora se rebelou. Depois do programa do Júlio Louzada, mamãe deixava o rádio na mesma estação para ouvir “A Hora da Saudade”, um programa musical que tinha na abertura o cantor Augusto Calheiros cantando o poema “Ave Maria”: “Cai a tarde tristonha e serena em macio e suave langor, despertando no meu coração a saudade do primeiro amor...” Ouvir aquela valsa, embora bonita e poética, dava uma tristeza danada, uma vontade de sair correndo pelo mundo afora e fugir para sempre. Terezinha deve ter sentido o mesmo, porque depois da segunda música, perguntou de sopetão: “Vocês não ouvem “A Hora do Rock?" Nós nem imaginávamos o que era aquilo até ela nos explicar. Pediu permissão à mamãe para sintonizar na rádio Mayrinck Veiga o programa do Isaac Zaltman. Sem graça, mamãe consentiu e foi quando ela perdeu o domínio do rádio. “A Hora do Rock” passou a ser a nossa hora e tudo mudaria desde então. Acabava a “Hora da Ave Maria” e a gente pimba!, mudava para o programa, que já começava arrepiando com Bill Halley e seus Cometas cantando: “One-two-three o’clock four o’clock rock, five-six-seven o’clock eight o’clock rock...” E foi Terezinha quem nos ensinou a dançar o rock’n roll. Yayyy!

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