Hoje acordei
pensando no Chiquinho e no seu destino cruel, não sei se pela
turbulência do momento, devido à crise que atravessamos, ou pelas
maldades que vejo publicadas nas redes sociais. Chiquinho coloriu nossas
vidas de criança e foi muito amado. Quis o destino, porém, que tivesse
uma mãe desalmada. Mas antes falarei das condições e circunstâncias de
tão malfadada sorte.
Nasci, me criei, passei minha adolescência e
grande parte da minha vida adulta num subúrbio carioca. Éramos os
chamados roceiros. Do centro da cidade “para trás”, ou seja, para a zona
norte da cidade, não existíamos ou éramos ridicularizados pelos
“granfinos” da zona sul, porque vivíamos praticamente no campo, em
pequenas chácaras. Nossas casas eram “simples com cadeiras nas calçadas e
na fachada escrita em cima que era um lar”, como na música de Garoto.
Não faz muito tempo, li um artigo do Carlos Saldanha que, para quem não
conhece, é um famoso diretor de cinema e produtor de filmes de animação
como “Rio”, “A era do gelo”, etc. Pois bem, Saldanha nasceu em Marechal
Hermes e ele conta como foi morar num subúrbio da zona norte num
interessante artigo publicado na revista Época (quem se interessar,
procure no Google). A cidade partida, da qual fala Zuenir Ventura em seu
livro, sempre existiu, assim como sempre houve hostilidade do pessoal
da zona sul contra a zona norte, mas naquele tempo tudo se resumia
apenas à zombaria, e me parece que vigora até hoje, porque a estupidez
humana é infinita. Foi meu avô, um abastado comerciante português, quem
comprou uma chácara e levou a família, no início do século passado, para
a zona norte. Foi lá que minha mãe e meus tios, eu, meus irmãos e meus
primos todos nascemos. Foi lá que “crescemos e nos multiplicamos”.
Nossos vizinhos vinham de várias partes do país e do mundo, meu vizinho
de baixo era mineiro e ele gostava de botar na vitrola uma música que
dizia assim “quem pensar que o mineiro é bobo, vai cair na boca do
lobo”. Seu Ítalo, como o chamávamos, foi o primeiro a comprar um
aparelho de TV. À noite, ele abria a porta da sala e deixava-nos ver os
programas, do lado de fora do portão, onde nos aglomerávamos diante
daquela maravilha. Aos domingos, a entrada era franqueada à garotada
para vermos o teatrinho Troll, com a princesa Norma Blum, e seu Ítalo
generosamente nos oferecia frutas. Era o vizinho mais rico da rua, mas
muito ciumento. Não deixava a mulher dele, uma senhora que passou a se
vestir de negro depois que seu pai, com quem eu gostava muito de
conversar, morreu numa manhã, e eu soube quando voltei da escola.
Naquele tempo, velava-se o defunto nas casas, que se enchiam de
vizinhos. Dona Edith, mulher do seu Ítalo, não ia à rua nunca, exceto em
alguns passeios no Studebaker reluzente do marido. Por isso, era eu
quem fazia as compras para ela todo dia. Dona Edith me dava uma listinha
e, na entrega das compras, um trocadinho, que eu adorava, porque com
aquele dinheiro podia comprar as figurinhas do álbum de cinema ou uma
lata de leite condensado, que eu bebia devagarinho, às escondidas dos
meus irmãos. O vizinho de cima era do interior do estado do Rio de
Janeiro, eram os parentes da Vitória e Ledinha. Na casa deles tinha um
pé de cajá, fruta que me enche a boca de água só de lembrar, um cajueiro
e um pé de abiu, fruta em formato de amêndoa que nós pegávamos do pé
quando estava bem amarelinha e nos deixava uma cola nos lábios, motivo
de muitas brincadeiras. Mais adiante, subindo a rua, havia alemães e eu
frequentava a casa dos Ballreich, originários de Essen, na Alemanha. Foi
por causa deles que conheci a culinária e os costumes do país e também
comecei a aprender alemão, língua que afinal não segui estudando, porque
o inglês era mais legal e eu precisava dele para cantar as músicas que
tocavam no rádio. “One, two, three, four rock around the clock, five,
six, seven...” E enquanto aprendia inglês, eu cantava a música que mais
fazia sucesso na época, “Jambalaya”. Eu imitava perfeitamente a Brenda
Lee. Quando cantei a primeira vez no pátio da escola, a garotada ficou
doida. As meninas passaram a me olhar com melhores olhos e os meninos
com mais interesse. Mas graças a Brenda Lee descobri, ainda muito
criança, que não fora feita para o estrelato. Era um saco ter de cantar
toda hora “Jambalaya a-crawfish pie, a-file gumbo, ‘cause tonight I’m
gonna see my ma cher amio...” Havia poloneses - como minha amiga
Jeannette Iablonski, que se mataria anos depois, ateando fogo às vestes,
por causa de um amor não correspondido - e italianos. Ainda me lembro
dos rapazes italianos mais legais, Sergio, Domenico e Vincenzo, que me
levavam a passear de Vespa pelo bairro, sem o conhecimento da minha mãe,
claro, pois ela me mataria se soubesse. E tinha minhas amigas
italianas, como a Mirella e a Brunella, de quem sou amiga até hoje. As
músicas italianas faziam sucesso nas rádios, como “Datemi un martello”,
da Rita Pavone, a romântica “Io che amo solo te”, do Sergio Endrigo e
"Il Mondo". “Il mondo soltanto adesso io ti guardo, nel tuo silenzio io
mi perdo e sono niente accanto a te...”O armazém, onde minha mãe fazia
as compras do mês, era de um português, seu Belmiro, um senhor baixo e
gordo, que gostava de agradar a freguesia. Quando minha mãe lhe pedia
para fazer desconto, ele rapidamente consentia e na hora de somar, o que
ele fazia de cabeça, dizia assim: “mais 7, mais, 2, mais 4... e lá vai
8, mas pra senhora vai 7”. No bairro ao lado, viviam algumas famílias
espanholas, como os Ponce de Leon. Esse era meu universo e nele estava a
casa da minha tia, uma pequena chácara, para onde íamos todos os dias,
depois dos afazeres escolares, para brincar com os primos.
A tia criava galinhas e aí um belo dia teve a ideia de criar porcos
também. Não sei como começou, só me lembro que no chiqueiro que ela
mandou construir havia uma porca enorme, barriguda e que daquela barriga
saiu um monte de porquinhos, todos lindos e rosados, que nós quisemos
logo pegar para brincar. Mas não, a tia não deixou, porque ela os
alimentaria e os deixaria crescer para depois matá-los e comer a carne
deles. Estávamos longe de imaginar os planos tenebrosos da tia e sempre
que chegávamos a casa dela íamos correndo ver os porquinhos mamar. Nossa
atenção passou a se concentrar num deles, o menor de todos, que nunca
conseguia uma teta e ficava jogado num canto, emagrecendo a olhos
vistos. Apontamos o porquinho para a tia e ela passou a prestar atenção.
Naquela época, poucas crianças tinham animais de estimação. Minha
mãe dizia que já tinha trabalho demais para cuidar de quatro filhos.
Quando estava para se casar, meu tio ganhou de presente um cachorrinho e
pediu minha mãe para cuidar dele. Eu me apaixonei pelo cãozinho e
aquela foi a primeira vez que tive em casa um animal de estimação, mas
foi por pouco tempo. Certa vez, quando ia para a escola e já estava
quase chegando, olhei para trás e, para minha surpresa, o cãozinho havia
me acompanhado. Parei sem saber o que fazer. E aí me ocorreu uma ideia.
Toquei a campainha de uma casa, a senhora veio atender o portão e eu
lhe expliquei o que acontecera. Ela me olhou com ternura e disse que
fosse tranquila para a escola. Ela cuidaria dele para mim. Ao voltar,
parei na casa para pegá-lo e a senhora me contou que uma outra pessoa
havia estado lá perguntando por ele. Quis levá-lo, mas ela não deixou,
pois havia prometido que só o entregaria a mim. Foi a única experiência
que tive com um pet até então, mas estava prestes a ter outra, muito
mais intensa.
Um dia, quando voltava da escola, vi minha prima
empurrando um carrinho de bebê. Aproximei-me, pensando tratar-se de uma
nova boneca, pois ela as tinha aos montes, cada uma mais linda que a
outra, mas todas ficavam guardadas em suas caixas originais num armário,
pois eram de louça e a tia tinha medo que minha prima as quebrasse.
Nunca vi minha prima brincar com elas. Uma vez, a tia quis nos mostrar a
mais nova boneca que minha prima ganhara no Natal e, ao pegá-la, ela
escorregou da caixa e caiu, espatifando-se no chão, para horror de todos
nós. Minha tia ficou em estado de choque, porque era uma boneca
caríssima e eu fiquei muda, estática, sinceramente de coração partido.
Mas o que estava no carrinho de bebê que a prima empurrava não era uma
boneca - era um porquinho e ele estava todo perfumado e vestido tal qual
um bebê, com um laço de fita no pescoço. A prima explicou que a tia
havia decidido tirar o porquinho do chiqueiro e alimentá-lo. Minha prima
então decidiu dar-lhe um banho e cuidar dele como se fosse um bebê.
Parecia mesmo e ela passou a chamá-lo de Chiquinho. Num instante,
Chiquinho se tornou o queridinho da molecada, a coqueluche, como se
dizia na época, e as brigas entre nós começaram. Eu puxava o saco da
prima para ela me deixar pegar o Chiquinho no colo um pouco e brincar
com ele. Se não dava certo, saía briga e ficávamos de mal. Todo mundo
passou a disputar o Chiquinho, que foi ficando mimado e muito levado.
Entrava na casa e fazia cocô para todo lado. A tia foi ficando nervosa
com nossas brigas e com o comportamento do Chiquinho. Começou a ameaçar
tirá-lo de nós e devolvê-lo ao chiqueiro. Em pouco tempo, Chiquinho
cresceu e já não parecia mais um bebê. Já não ficava quietinho no colo,
queria o chão para correr e brincar. Chiquinho revelou-se um grande
companheiro de brincadeiras. Seguia-nos para todo lado, mas de vez em
quando fugia e ia se esconder na casa da tia. Entrava sem que ela o
notasse e fazia cocô nos lugares mais inusitados, deixando a tia muito
zangada. Suas diabruras acabaram irritando demais a tia, que mal tinha
tempo para se coçar. Foi aí que a desgraça aconteceu.
Um dia, ao
voltar da escola, encontrei a prima no portão, à minha espera, chorando.
Aproximei-me assustada e ela me contou. A tia tirou-lhe o Chiquinho,
que dormia com ela, durante a noite e o levou de volta ao chiqueiro. Ao
acordar, ela perguntou pelo porquinho e a tia lhe disse a verdade. Ela
foi correndo ao chiqueiro e não o viu lá. As duas voltaram ao chiqueiro e
puseram-se a buscá-lo por todo lado e só então se deram conta que a
própria mãe, talvez com a ajuda dos irmãos, o haviam comido durante a
noite. Dele só sobraram os ossos num canto do chiqueiro. A prima chorava
copiosamente e eu me juntei a ela. Aos poucos, os outros primos
chegaram e todos choramos. A tia mal nos olhava, parecia envergonhada e
abatida. Minha prima a culpava pela tragédia e aí, um dia, a tia
resolveu acabar com o chiqueiro. Vendeu a porca e os porquinhos.
Desistiu da ideia de criá-los para comer e nos disse a razão: “eu não
poderia comer uma mãe tão desalmada”.
Depois de vender a porca e os
porquinhos, a tia trabalhou a terra onde ficava o chiqueiro e fez uma
horta ali. Durante algum tempo, nos emocionávamos quando olhávamos o
local onde ficava o chiqueiro, mas aos poucos, como costuma acontecer
com as crianças, fomos nos acostumando com a ausência do Chiquinho e eu
até acho que meus primos podem ter se esquecido dele. Eu não. Era a
segunda perda que eu sofria de um animalzinho querido. Pouco a pouco,
fomos buscando outras formas de diversão – havia muitas - e a primeira
delas foi voltar para os braços fartos e generosos do velho
tamarindeiro, que desciam em ramas rendilhadas até o chão, como a
convidar a abrigar-nos em seus galhos - nosso lugar preferido de jogos e
brincadeiras. Hoje em dia, quando penso no velho tamarindeiro, sinto um
nó na garganta e vontade de chorar, porque sei que pessoas insensíveis
não o reverenciaram, não se renderam diante de sua majestade e o
derrubaram, assim que a casa da tia foi vendida anos depois. Quanto ao
Chiquinho, durante todos esses anos nunca o esqueci e é em nome dessa
lembrança triste e nostálgica, grande companheira e formadora do meu
caráter e sentimentos, que escrevi esta historieta.