Havíamos chegado a um ponto em que a rua era um pouco mais larga e continuava em degraus que desciam. Foi então que a vi. Caminhando ao meu lado, Horácio olhava para o chão, recusando-se a fazer parte daquela paisagem. Ele mal conseguia disfarçar o desgosto que sentia e parecia prestes a explodir. Estava amuado e infeliz. (Momentos mais tarde, quando já havíamos chegado ao restaurante e a música inconfundível de tons arabescos invadia o ambiente, Horácio, que mal tocara na comida, me diria acabrunhado, em alta voz “se quiser que eu morra, me deixe neste lugar”. Estávamos muito próximos aos músicos e o homem que tocava a tabla entendeu o que Horácio dissera. Olhou-o com um misto de mágoa e desprezo. Nos lábios, um sorriso de escárnio.)
Nossos olhares se cruzaram. Era uma mulher um pouco gorda, vestida num xador já meio surrado. Vinha subindo as escadas. Na cabeça, o véu muçulmano. Aparentava uns quarenta e sete anos, mas era provavelmente mais jovem. Talvez tivesse a minha idade. Ela estacou e eu também. Ficamos um breve momento mirando-nos profundamente, enquanto ela suspirava de cansaço. O que ela vira no meu olhar que a fez estancar? Nunca vou saber. E só agora, muitos anos depois, sinto essa curiosidade que nunca será satisfeita. Mas eu me lembro do que percebi naquele instante. Nunca vira antes um olhar tão triste. Não era só tristeza, mas também cansaço, desânimo, desapontamento, desilusão, desejo de desistir da luta diária e sofrida, um grito de socorro, talvez. Era o olhar de uma mulher intimidada, amargurada, humilhada, ameaçada, aturdida, constrangida, reprimida, vencida, sofrida, acuada, cercada, entocada, confusa, encurralada, parada, desamparada, espantada, paralisada, desesperada. Aquele olhar me assombra até hoje.
Anos mais tarde, um outro olhar me atraiu e fascinou.
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