segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

VIDA NA ROÇA – AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS – A REVELAÇÃO


“...o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!” (Guimarães Rosa, Grandes Sertões Veredas, 1976)

O sol ia alto no céu. Pequenas nuvens brancas e esparsas, emolduravam o firmamento, algumas ainda cinzentas, lembrando a chuva da noite anterior. O calor àquela altura era abrasador me fazendo suar em bicas, mas eu não ousava arredar pé daquele canto onde me sentara com o palhaço para ouvir a revelação do mistério da fazenda.

E ele começou assim: o avô do seu Doquinha era um homem muito mau. “Mau mesmo, moça, de verdade.” Era o pior dono de escravos da região e muitos deles morreram dos maus tratos sofridos. Conta-se que os que sobreviveram rogaram-lhe uma praga. Seu Juvelino, como se chamava, era homem sem fé e não se importava com pragas. Também não gostava da Folia de Reis e nunca quis receber o grupo em sua casa. Dizem que à praga somou-se a maldição pelo desprezo que tinha pelas pessoas e pela descrença em Deus. “A rezadeira, Maria Iná, foi quem espalhou a história pela região”, explicou Joca. A falecida Maria Iná contou que uma vez, ao se aproximar da fazenda, a bandeira que o alferes levava à frente do grupo, caiu-lhe das mãos e manchou-se de sangue. Seu Juvelino, postado no portão que levava à varanda, impediu a entrada da Folia de Reis. Desde então, de acordo com Maria Iná, presente durante o acontecimento, caiu uma maldição sobre a fazenda. Pouco tempo depois, seu Juvelino morreu de doença misteriosa e o povo da região acredita que é seu fantasma que zanza pela casa à noite. Joca interrompeu a narrativa e me perguntou se eu tinha alguma vez escutado passos pela casa durante a noite. Respondi que sim, a essa altura morta de medo. Filhos e netos também foram amaldiçoados, segundo Maria Iná, e a maldição chegou ao seu Doquinha, cujos olhos adquiriam o aspecto amedrontador de animal selvagem quando se aproximava o dia dos festejos da Folia de Reis. Perguntei se a maldição também atingira Vitória e Ledinha. Ele afirmou que também se comentava na região que as meninas adquiriram o hábito de roubar. E quem era o palhaço que vi na Folia de Reis de ontem, que tinha os mesmos olhos do seu Doquinha, era ele?”, perguntei. “Sim”, respondeu. “Por quê?”, quis saber e Joca me disse que era a sina dele e aí me contou outra história. 

“Os palhaços” – explicou – são o diabo que, a mando do rei Herodes e seus soldados, teriam saído em perseguição ao Menino Jesus, para matá-lo. Eles são profanos, moça, simbolizam a coisa ruim, por isso eles não devem entrar em igrejas, eles não levantam a sagrada bandeira e não podem ficar sozinho no final da folia, senão o diabo os carrega.“ São, enfim, personagens sempre cercados de obrigações, como a de recolher dinheiro para ajudar a Folia de Reis, regras e restrições. Eles devem permanecer do lado de fora das casas dos devotos até o momento de sua apresentação. Dizem que é perigoso tocar na sua roupa ou na máscara. “Os palhaços precisam do sagrado da Folia de Reis para se purificar e pagar os pecados dos seus antepassados.” O que os palhaços fazem na festividade é pedir perdão pela perseguição ao Menino Jesus. Eles são os soldados de Herodes que se arrependeram quando viram o Menino Jesus e usam as máscaras para que o próprio Herodes não os reconheça e os acuse de traição.

“Mas na fazenda disseram que seu Doquinha estava em Macuco, por que mentiram pra mim?” E Joca respondeu que todos sabiam que era seu Doquinha quem estava por trás da máscara, mas ninguém dizia nada porque tinham vergonha de sua condenação. Quis saber ainda por que fora Dona Nadir quem beijou a bandeira se seu Doquinha estava na Folia de Reis. “Porque só ela podia fazer isso, porque vem de uma família de gente religiosa, que respeita e venera a Folia de Reis” – respondeu.
Faltava perguntar por que a filha da Dona Geny era uma menina tão estranha e apática. E Joca me contou que ela dormira certa vez na fazenda, para atender a mãe de Dona Nadir, que estava enferma e, ao escutar passos no corredor, abriu a porta para ver quem era. Ficou cara a cara com o fantasma do seu Juvelino. “Todo mundo na região sabe disso, moça.” Desde então a menina passou a sofrer terrores noturnos e ficara assim, como disse Joca, “doente dos nervos”.


Curiosidade satisfeita, quis saber se algum dia a maldição teria fim. Joca me disse que seu Doquinha ainda teria de ser o palhaço da Folia de Reis por um longo tempo. “Foi maldade demais do seu Juvelino, moça. Tem muito pecado pra pagar.” Pode ser que ele um dia chegue a ser o alferes da bandeira, também chamada de "Doutrina", o elemento sagrado da festa, beijada respeitosamente pelos moradores das casas visitadas. Nela está colada uma estampa dos Três Reis Magos. “Mas acho que ainda levará anos até que a maldição seja apagada e os pecados do seu Juvelino perdoados.” Quando chegar esse dia, haverá a redenção do seu Doquinha e a quebra da maldição que atingiu Vitória e Ledinha.

sábado, 2 de dezembro de 2017

VIDA NA ROÇA – AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS –IV


Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo. (Mark Twain)

Desviei o olhar do palhaço, procurei por todos os cantos a tia Maria e não a vi. Tentei ver se Vitória e Ledinha estavam perto, em vão. Meu coração batia acelerado, minhas pernas pesavam como chumbo, para onde olhava, não havia nenhum rosto conhecido. Chovera no dia anterior e o dia estava nublado e fresco, mas eu suava muito e minhas mãos estavam úmidas. Consegui chegar perto dos músicos para prestar atenção no que cantavam:

“Senhor e dono da casa, vai chegando a folia
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria ai ai ai!


Tentei concentrar-me na música, mas meu desejo íntimo era fugir dali. Finalmente, os foliões começaram a entrar pela varanda e eu os segui, enquanto o palhaço ficava para trás, rodeado das crianças da fazenda, que tentavam imitá-lo. Com esforço, consegui entrar na casa abrindo caminho penosamente. Havia muita gente, os peões e suas famílias vieram em massa. Finalmente consegui chegar no quarto onde dormia com a tia Maria. Fiquei lá, tentando recuperar a calma, mas minha cabeça girava.

Voltei à sala pouco depois e lá estavam Vitória, Ledinha e tia Maria. Respirei aliviada. A mesa estava posta com as gostosuras preparadas pela Dona Geny, que ia e voltava da cozinha, trazendo seus quitutes para servir primeiro o grupo da folia de reis: o mestre, o contramestre, os três reis magos, os palhaços, os alfeires e os foliões. Dona Nadir seguiu o ritual e beijou a bandeira, mas seu Doquinha, o anfitrião, havia sumido. Perguntei a Vitória onde ele estava e ela me respondeu que havia ido à Macuco para fazer uma transação de gado. 


Àquela hora eu costumava estar faminta, mas o medo embrulhou-me o estômago. Não consegui comer nada. Fiquei ali na sala, controlando o palhaço com o olhar e esperei até Dona Geny trazer o último prato. Voltei com ela para a cozinha. Ela me olhou curiosa, pensando que eu queria algum doce, mas ao ver meu olhar aflito perguntou-me o que havia acontecido. Não sabia o que dizer ou se devia dizer e então perguntei pela Lela. Notei uma sombra em seu olhar e ela respondeu que a filha ficara em casa cuidando dos irmãos mais novos. Achei estranho, porque os filhos da Dona Geny estavam no quintal brincando com o palhaço, menos a Lela. Por que Dona Geny mentiria para mim? Confusa, pedi licença e voltei para a sala. 


Aquela era a primeira vez que via uma Folia de Reis e os cânticos, a festa, a música entraram na minha alma para sempre. Gostava do ritual, das fantasias, só o palhaço me dava medo. “O que estraga a felicidade é o medo,” dizia Clarice Lispector e era verdade. Decidi que precisava conversar com alguém. Chamei tia Maria num canto e lhe perguntei se o palhaço era seu Doquinha. Ela perguntou-me em voz baixa, olhando para o lado oposto do grupo da folia de reis, se eu ficara com medo do palhaço. Respondi-lhe que sim e ela então me disse, mal disfarçando o sorriso, que depois conversaria comigo. 


Abastecidos da comida deliciosa da Dona Geny, chegou a vez da criançada se fartar também. Eles se aproximaram numa grande algazarra, tropeçando uns nos outros, como fazem os pombos quando se lhes oferece milho. O grupo da folia de reis, pegou seus instrumentos, violas, reco-reco, tambores, acordeões, sanfonas, pandeiros e gaitas e se despediu com reverências, cantando:


Senhor e dono da casa, a folia vai saindo
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino ai ai ai!”


À noite, quando fomos dormir, quis saber do palhaço, mas tia Maria alegou cansaço e dor de cabeça, virou-se para o outro lado e dormiu. Disse-me “amanhã te conto”. Aquilo me deixou mais ansiosa e custei a dormir. Lá pelas tantas, ouvi passos no corredor. Alguém zanzava de um lado para o outro. Pé ante pé, fui até a porta, tentei abri-la devagarinho, mas a porta rangeu. Assustada, voltei correndo para a cama e me agarrei à tia Maria, que quase acordou. Os passos cessaram. Meu coração foi se acalmando pouco a pouco e adormeci. Tive um sono turbulento e cheio de pesadelos. Antes de adormecer, porém, prometi a mim mesma que tiraria aquela história a limpo no dia seguinte.

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...