sábado, 2 de dezembro de 2017

VIDA NA ROÇA – AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS –IV


Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo. (Mark Twain)

Desviei o olhar do palhaço, procurei por todos os cantos a tia Maria e não a vi. Tentei ver se Vitória e Ledinha estavam perto, em vão. Meu coração batia acelerado, minhas pernas pesavam como chumbo, para onde olhava, não havia nenhum rosto conhecido. Chovera no dia anterior e o dia estava nublado e fresco, mas eu suava muito e minhas mãos estavam úmidas. Consegui chegar perto dos músicos para prestar atenção no que cantavam:

“Senhor e dono da casa, vai chegando a folia
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria
Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria ai ai ai!


Tentei concentrar-me na música, mas meu desejo íntimo era fugir dali. Finalmente, os foliões começaram a entrar pela varanda e eu os segui, enquanto o palhaço ficava para trás, rodeado das crianças da fazenda, que tentavam imitá-lo. Com esforço, consegui entrar na casa abrindo caminho penosamente. Havia muita gente, os peões e suas famílias vieram em massa. Finalmente consegui chegar no quarto onde dormia com a tia Maria. Fiquei lá, tentando recuperar a calma, mas minha cabeça girava.

Voltei à sala pouco depois e lá estavam Vitória, Ledinha e tia Maria. Respirei aliviada. A mesa estava posta com as gostosuras preparadas pela Dona Geny, que ia e voltava da cozinha, trazendo seus quitutes para servir primeiro o grupo da folia de reis: o mestre, o contramestre, os três reis magos, os palhaços, os alfeires e os foliões. Dona Nadir seguiu o ritual e beijou a bandeira, mas seu Doquinha, o anfitrião, havia sumido. Perguntei a Vitória onde ele estava e ela me respondeu que havia ido à Macuco para fazer uma transação de gado. 


Àquela hora eu costumava estar faminta, mas o medo embrulhou-me o estômago. Não consegui comer nada. Fiquei ali na sala, controlando o palhaço com o olhar e esperei até Dona Geny trazer o último prato. Voltei com ela para a cozinha. Ela me olhou curiosa, pensando que eu queria algum doce, mas ao ver meu olhar aflito perguntou-me o que havia acontecido. Não sabia o que dizer ou se devia dizer e então perguntei pela Lela. Notei uma sombra em seu olhar e ela respondeu que a filha ficara em casa cuidando dos irmãos mais novos. Achei estranho, porque os filhos da Dona Geny estavam no quintal brincando com o palhaço, menos a Lela. Por que Dona Geny mentiria para mim? Confusa, pedi licença e voltei para a sala. 


Aquela era a primeira vez que via uma Folia de Reis e os cânticos, a festa, a música entraram na minha alma para sempre. Gostava do ritual, das fantasias, só o palhaço me dava medo. “O que estraga a felicidade é o medo,” dizia Clarice Lispector e era verdade. Decidi que precisava conversar com alguém. Chamei tia Maria num canto e lhe perguntei se o palhaço era seu Doquinha. Ela perguntou-me em voz baixa, olhando para o lado oposto do grupo da folia de reis, se eu ficara com medo do palhaço. Respondi-lhe que sim e ela então me disse, mal disfarçando o sorriso, que depois conversaria comigo. 


Abastecidos da comida deliciosa da Dona Geny, chegou a vez da criançada se fartar também. Eles se aproximaram numa grande algazarra, tropeçando uns nos outros, como fazem os pombos quando se lhes oferece milho. O grupo da folia de reis, pegou seus instrumentos, violas, reco-reco, tambores, acordeões, sanfonas, pandeiros e gaitas e se despediu com reverências, cantando:


Senhor e dono da casa, a folia vai saindo
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino
Fica com Deus nosso pai e a proteção do divino ai ai ai!”


À noite, quando fomos dormir, quis saber do palhaço, mas tia Maria alegou cansaço e dor de cabeça, virou-se para o outro lado e dormiu. Disse-me “amanhã te conto”. Aquilo me deixou mais ansiosa e custei a dormir. Lá pelas tantas, ouvi passos no corredor. Alguém zanzava de um lado para o outro. Pé ante pé, fui até a porta, tentei abri-la devagarinho, mas a porta rangeu. Assustada, voltei correndo para a cama e me agarrei à tia Maria, que quase acordou. Os passos cessaram. Meu coração foi se acalmando pouco a pouco e adormeci. Tive um sono turbulento e cheio de pesadelos. Antes de adormecer, porém, prometi a mim mesma que tiraria aquela história a limpo no dia seguinte.

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