quarta-feira, 31 de março de 2010

Outra vez no hospital - final

Zini me fez companhia e ficou comigo até a hora da cirurgia. Ainda no quarto, eu falava com a filha mais velha e ia acompanhando a saída dela até o aeroporto, a chegada, o check-in e o embarque para a Inglaterra. Ela ia embora e eu ficaria sozinha, aguardando o momento em que seria operada. Desabei. Chorei muito. Tinha medo de morrer.

A operação correu bem. Eles removeram um tumor extenso que se havia instalado na coxa direita, quase no quadril. Esse tumor foi provocado pela perigosíssima bacteria Staphilococus Aureus, frequentadora das UTIs e responsável por muitas mortes em hospitais. Acho que a contraí no Miguel Couto, mas tive a sorte abençoada de tê-la concentrada apenas no abscesso, não atingindo a corrente sanguínea. O resultado é que fiquei onze dias hospitalizada, tomando remédios fortíssimos por via intravenosa.

Ao fim dos onze dias, recebi alta. Estava livre, enfim. Saí caminhando, ainda com alguma dificuldade e na saída quis passar na capela para agradecer ao bom Deus pela recuperação. Ao tentar subir os degraus, que estavam molhados, dei de cara com o Zeca Pagodinho que estendia as duas mãos para me amparar. Fiquei tão atônita que não entendi direito o gesto tão generoso. Subi sozinha os degraus me apoiando no corrimão. Ele também não entendeu. Baixou as mãos e foi embora. A filha mais velha, quando lhe contei o fato, me disse com seu bom humor habitual: “Você o inspirou a compor um pagode intitulado “Coroa Ingrata”.

terça-feira, 30 de março de 2010

Outra vez no hospital - parte 1

No domingo, um dia antes da partida da filha mais velha, meu sobrinho veio se despedir dela, trazendo minha querida sobrinha, mulher dele, que é médica, e as duas lindas meninas, filhas deles. Minha sobrinha ficou muito preocupada ao saber do que acontecera com a perna e insistiu que eu fosse ao ortopedista urgentemente.

Telefonei para o ortopedista naquele dia mesmo contando o que se passara e ele me “intimou” a ir na segunda-feira ao consultório dele. Fui com a Zini, pensando que se tratava de algo banal. Ao ver o que era, o médico ficou apavorado, brigou comigo pela minha displicência e me mandou para o raios X. Eu ia ser operada de emergência naquela noite mesmo e não ia poder desfrutar dos últimos momentos com minha filha e meu neto. Fiquei arrasada.

De tarde, a filha mais velha veio me visitar no quarto, onde eu aguardava os procedimentos para a cirurgia. Ela trouxe meu neto e meu genro para se despedirem de mim. Nosso encontro foi muito emocionante. Minha querida filha chorou muito e eu tive de buscar dentro de mim uma força extraordinária para não chorar também. Sabia que a situação estava preta, receava pela minha vida, mas aquele não era o momento de fraquejar. Eu ia lutar de novo para sobreviver.

segunda-feira, 29 de março de 2010

"Morte em Veneza" - final


Os americanos deviam estar loucos naquele distante 1972. Deram a “Operação França” (The French Connection) o prêmio máximo da Academia e nem equer se dignaram a dar pelo menos o prêmio de melhor figurino à obra de Visconti.

E as loucuras continuaram. “Laranja Mecânica” (Orange Clockwork), do mestre Stanley Kubrick, também voltou para casa de mãos vazias. Não ganhou nenhum prêmio a que concorreu: filme, direção, roteiro adaptado e montagem.

Já os ingleses conferiram a “Morte em Veneza” os prêmios de melhor direção de arte (Ferdinando Scafiotti), fotografia (Pasqualino De Santis), figurino (Piero Tosi) e trilha sonora (Vittorio Trentino e Giuseppe Muratori), mas falharam em não dar o BAFTA de melhor injustiçado ator inglês Dick Bogarde, e de diretor ao gênio Luchino Visconti (ambos homossexuais) e, sobretudo, o prêmio de melhor filme a que a obra fazia jus.

Confira os principais prêmios e indicações da obra:

Oscar 1972 (EUA)
• Indicado na categoria de melhor figurino.

BAFTA 1972 (Reino Unido)
• Venceu nas categorias de melhor direção de arte, melhor fotografia, melhor figurino e melhor trilha sonora.
• Indicado nas categorias de melhor ator (Dirk Bogarde), melhor direção e melhor filme.

Prêmio Bodil 1972 (Dinamarca)
• Venceu na categoria de melhor filme europeu.

Festival de Cannes 1971 (França)
• Recebeu o prêmio do 25º aniversário do festival.
• Indicado à Palma de Ouro na categoria de melhor filme.

Prêmio David di Donatello 1971 (Itália)
• Venceu na categoria de melhor diretor.

domingo, 28 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 8


Na agonia da morte, ele ainda lembra um diálogo com Alfred, ocorrido imediatamente após o fracasso de sua última obra, e que teria agravado seus problemas cardíacos. Esse último diálogo ajuda-nos a compreender afinal o que morre em Veneza.



Alfred: Seu trapaceiro, seu vigarista!


Aschenbach: O que mais eles querem de mim?


Alfred: Pura beleza. Severidade absoluta.
Pureza da forma.
Perfeição. A abstração dos sentidos! Tudo se foi! Nada restou! Nada! A sua música nasceu morta e você está desmascarado.

Aschenbach: Alfred, mande-os embora. Por favor, faça com que saiam.


Alfred: Mandá-los embora?! Vou entregá-lo a eles!


Aschenbach: Não, Alfred, por favor. Não faça isso, por favor.
Não, por favor. Não...


Alfred: A eles! Eles vão julgá-lo. E eles vão
condená-lo.


Aschenbach: Não, Alfred, não.


Alfred: Sabedoria. Verdade. Dignidade humana. Está tudo acabado. Agora, não há mais razão para que você não vá para o túmulo, levando sua música. Você alcançou o perfeito equilíbrio. O homem e o artista são um só. Chegaram
juntos ao fundo do poço. Você nunca possuiu castidade. A castidade é o dom da pureza e não o doloroso resultado da velhice. E você está velho, Gustav. E, em todo o mundo,
não há impureza mais impura do que a velhice.

sábado, 27 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 7



Como todo ser que se apaixona e almeja a reciprocidade, Aschenbach vai à barbearia e lá é facilmente convencido a usar artifícios que lhe darão uma aparência mais jovem. Na saída, o barbeiro lhe diz: “Agora o senhor está pronto para se apaixonar.”


Ele sai confiante, enquanto Veneza agoniza. A decrepitude e a morte lhe parecem distantes. Seu olhar não se detém nas medidas desesperadas das autoridades para conter o avanço da epidemia de cólera e ele parece alheio ao perigo que ronda as ruas da cidade.

Veja a cena:
http://www.youtube.com/watch?v=uYBoo-wWJJA&NR=1

De volta ao hotel, encaminha-se para a praia. Faz calor e ele se abriga do sol para olhar Tadzio furtivamente, em brincadeira infantil com um colega. Enquanto Aschenbach o observa ao longe, a tinta que fora usada para tingir seus cabelos escorre-lhe pela face e a maquiagem derrete. Aschenbach vai aos poucos adquirindo uma aparência grotesca, semelhante à do palhaço que havia escarnecido do seu sofrimento. Ao longe, onde o mar quase se confunde com a linha do horizonte, surge a figura de Tadzio, como um anjo, enquanto Aschenbach morre lentamente.

sexta-feira, 26 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 6


Desconfiado dos boatos sobre a epidemia que rondam Veneza, Aschenbach busca a verdade nos jornais e não a encontra. Enfim, decide deixar a cidade, o que é também sua tentativa de escapar ao efeito que a beleza de Tadzio tem sobre ele, mas a bagagem é desviada, o que o obriga a permanecer em Veneza e testemunhar a chegada da epidemia de cólera asiática. E Aschenbach esboça um sorriso agradecido à sorte que intercedeu em seu favor. Ele permanecerá em Veneza e não mais fugirá. Aceitará seu destino e tentará enganar a morte.

Numa noite festiva, o palhaço líder do grupo musical que entretém os hóspedes do hotel canta uma música bufa, cujo estribilho cômico parece escarnecer dos conflitos sentimentais de Aschenbach. O bufão apela para gestos e contorcionismos corporais grotescos, quase obscenos, enquanto sua gargalhada contamina a audiência. Visconti dá vida a esse coro extraído do livro de Mann e que surge para anunciar a tragédia que se avizinha.

Veja a cena :
http://www.youtube.com/watch?v=W-hSFDIHvKs&feature=related

quinta-feira, 25 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 5


Alfred é personagem criado por Visconti – ele não está presente no romance homônimo de Thomas Mann. Esse fato vem justamente desmentir a qualificação homossexual atribuída à obra. O livro, talvez seja gay; o filme, não. Visconti criou o diálogo filosófico entre Aschenbach e Alfred, para dar outra dimensão e profundidade ao romance. Ouso dizer que o filme “Morte em Veneza” é superior ao romance de Thomas Mann, e só mesmo um cineasta do quilate de Visconti conseguiria tal proeza.

De volta ao quarto, Aschenbach segue lembrando a conversa com Alfred.

Alfred: Seu grande equívoco, meu caro amigo, é considerar a vida, a
realidade, como uma limitação.

Aschenbach: E ela não é exatamente isso?
A realidade apenas nos distrai e
degrada. Sabe, às vezes eu penso que os
artistas se parecem mais com caçadores que atiram no escuro. Não sabem qual é o seu alvo, nem tampouco se o atingiram.
Mas não se pode esperar que a vida ilumine o alvo e estabilize a sua mira. A criação da beleza e da pureza é um ato espiritual.
Alfred: Não, Gustav. Não! A beleza pertence aos
sentidos. Somente aos sentidos!
Aschenbach: Você não tem como alcançar o espírito... Você não tem como alcançar o espírito através dos sentidos. É somente através do absoluto controle dos sentidos que se pode, algum dia, alcançar sabedoria, verdade e dignidade humana.
Alfred: Sabedoria? Dignidade humana? Para que servem? O gênio é uma dádiva divina. Não! Uma punição divina. Uma chama breve e pecaminosa de dons naturais.
Aschenbach: Eu rejeito, eu rejeito as virtudes demoníacas da arte!
Alfred: E você está errado! O mal é uma necessidade, é o próprio alimento do gênio.

Para quem goste de filosofia e queira ouvir o diálogo integralmente:
http://www.youtube.com/watch?v=uacolGxksR0

quarta-feira, 24 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 4


Ao descer do barco, ouve-se o barqueiro dizer, como um corifeu: “Você pagará!”.
Veneza cobrará de Aschenbach um preço altíssimo.

Em Tadzio se concentra a paixão do artista pelo seu modelo ideal, a obsessão do criador pela criatura. E a história se constrói em torno desse personagem misterioso, que não diz uma palavra e cuja eloqüência está apenas no olhar ambíguo que dirige a Aschenbach. Apesar de quase mudo, o filme “grita” em toda sua extensão, envolvendo o espectador num remoinho de tamanha carga emocional que quase lhe tira o fôlego.

Uma noite, após o jantar, enquanto caminha e fuma pela varanda do hotel, Aschenbach lembra de uma conversa filosófica com Alfred. A voz em off logo cederá lugar a uma cena entre os dois, ocorrida em algum lugar do passado.

Alfred: Beleza. Quer dizer, o seu conceito
“espiritual” de beleza.
Aschenbach : Mas você nega a habilidade do
artista criar a partir do espírito?

Alfred: Sim, Gustav, isso é precisamente o que
eu nego.
Aschenbach: Então, a seu ver, o nosso trabalho como
artistas é...
Alfred: Trabalho! Exatamente. Você realmente acredita
que a beleza possa ser o produto do trabalho?
Aschenbach: Sim...
sim, eu acredito.
Alfred: É assim que a beleza nasce. Assim,
espontaneamente, indiferente ao seu trabalho e ao meu. Ela preexiste à nossa
presunção de sermos artistas.

terça-feira, 23 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 3


Aschenbach chega ao hotel no Lido sem se dar conta de que, quase ao mesmo tempo, o sirocco se aproxima, arrastando atrás de si uma epidemia de cólera. São os primeiros sinais da tragédia que se abaterá sobre o compositor. Mas o olhar predomina e tudo determina. E o olhar de Aschenbach é atraído para Tadzio (Björn Andrésen), um aristocrático adolescente polonês em férias com a família.

Ao vê-lo pela primeira vez, Aschenbach se deslumbra com a beleza e juventude do efebo e passa a segui-lo pelas ruas tortuosas de Veneza, em verdadeira obsessão. O jovem corporifica o ideal de beleza que Aschenbach almeja para suas obras. A quinta sinfonia de Mahler com seus acordes ao mesmo tempo romântico, de modulações trágicas, quase chegando ao fúnebre, segue os movimentos de Aschenbach. Thomas Mann, autor do livro homônimo, descreve o encontro:

“Aschenbach notou com espanto que o rapaz era de uma beleza perfeita. Seu rosto pálido, graciosamente reservado, emoldurado por cabelos anelados cor de mel, o nariz reto, a boca adorável, a expressão de seriedade afável, digna de um deus, lembrava uma escultura grega do período áureo, sendo que à mais pura perfeição da forma aliava-se um encanto pessoal tão exclusivo que o observador acreditava jamais ter encontrado, quer na natureza, quer nas artes plásticas, algo que se aproximasse de um acabamento tão feliz.”

Veja imagens de Tadzio enquanto ouve o quarto movimento (adagietto) da quinta sinfonia de Mahler :
http://www.youtube.com/watch?v=n2UYct17bFw&feature=related

segunda-feira, 22 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 2


A história se desenrola no início do século XX, precisamente em 1911, quase véspera da Primeira Grande Guerra, no período visto pelos historiadores como o início da decadência da burguesia e que foi marcado pelas consideráveis mudanças sócio-econômicas.

Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) é um compositor austríaco (no livro de Thomas Mann, onde Visconti buscou inspiração, ele era escritor), apaixonado pela perfeição e pela beleza. A ironia é o sobrenome do personagem: Aschenbach quer dizer “banho de cinzas”. Ele vai a Veneza em busca de repouso, após sofrer estresse emocional ocasionado pela morte da filha e de seu fracasso na estreia da última obra. Na primeira cena, acompanhamos sua chegada ao cais.

Veja o trailer do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=X4N8B1ggYc4&NR=1

Pelo olhar de Aschenbach, que vai predominar em toda a obra, acompanhamos as primeiras imagens da bela cidade com suas casas e prédios magníficos de cores que variam do amarelo ocre ao vermelho cadmium, suas ruas pontilhadas de canais e suas pontes raras. Tudo é registrado pela excepcional fotografia de Pasquale DeSantis.

domingo, 21 de março de 2010

"Morte em Veneza" - parte 1


Vou falar de um dos meus filmes preferidos, realizado na minha cidade preferida. “Morte em Veneza” inaugura este marcador. Pretendo apenas relatar minhas impressões e emoções, sem qualquer formalidade.
Atenção: Não leia, se você pretende ver o filme.



Há quem ache “Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971)” um filme gay. Nas vezes em que revelei minha paixão pela obra, não consegui reciprocidade, sempre que meu interlocutor era heterossexual. A própria menção ao filme já causava desconforto, e essa reação ao trabalho genial de Luchino Visconti muitas vezes me intrigou. Ao pesquisar o título na Internet, vi a seguinte entrada: “filme gay raro”.

Acho que quem restringe o filme do mestre Visconti à temática gay talvez não tenha mergulhado na profundidade da obra e, por conseguinte, não entendeu a sua essência. Todo mundo sabe que Visconti era homossexual. Björn Andrésen, que fez o Tadzio, se queixou anos mais tarde do constrangimento por que teve de passar nas vezes em que foi levado a boates gays, durante a rodagem do filme. Ele tinha apenas 17 anos e hoje em dia os americanos certamente classificariam a atitude de Visconti como sexual harassment.

Nada disso, porém, tira o brilho mágico dessa obra de arte feita por um dos maiores gênios da cinematografia mundial. “Morte em Veneza” é uma verdadeira aula de cinema. A obra, com seu ritmo lento, objeto de reclamações de alguns, leva o espectador a refletir sobre temas perturbadores como beleza e juventude, decrepitude, decadência e morte, tendo como pano de fundo a bela e eterna cidade italiana.

Assista ao making of do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=EbAdDoUsHhI&feature=related

sábado, 20 de março de 2010

De volta para casa - final

Foi Zini quem primeiro percebeu. Um dia, durante o banho, ela me perguntou que inchaço era aquele no alto da minha coxa direita. Olhei e percebi que realmente havia um volume estranho ali, mas eu a convenci de que era o atrito com a cadeira de rodas. Realmente, no dia anterior, eu tinha ficado muito tempo sentada. Naquele dia, 4 de junho, a caçulinha mandara rezar uma missa de ação de graças para nós duas. Para ela, pelo aniversário; para mim, pela recuperação. Eu me emocionei durante a missa, mas não quis comungar. Depois, teve bolo, doce e salgadinhos para as poucas pessoas que compareceram.

O tempo passou, veio a festinha do meu neto e o dia em que a filha mais velha ia embora se aproximava. Uns dois dias antes, quando estava sentada no sofá, ao me levantar notei que saía um líquido viscoso da coxa, do lugar onde havia o inchaço. Eu havia sofrido um corte naquela região por causa de uma fratura no fêmur. Mais tarde, durante o jantar, o líquido voltou a sair com mais força. Preocupada, minha filha sugeriu chamarmos a emergência do home care. A médica que me atendeu receitou um antibiótico e me mandou consultar o ortopedista imediatamente. Não foi o que fiz. Eu não queria que nada atrapalhasse aqueles últimos dias, queria desfrutar os últimos momentos com minha filha e meu neto, e fiquei calada.

sexta-feira, 19 de março de 2010

De volta para casa - parte 4

A realidade era dura. Minha casa foi invadida por gente estranha que circulava por todas as (poucas) dependências. Minha situação financeira era crítica e eu tinha de arcar com os gastos aumentados da luz, gás, telefone e da comida. A pouca reserva financeira que tinha conseguido acumular se esgotava rapidamente. Precisava ficar boa logo, precisava voltar ao trabalho para me recompor financeiramente. Pensando nisso, eu me esforçava, dava tudo de mim nos exercícios de fisioterapia. E eu avançava, surpreendendo a todos.

A chegada da filha mais velha com o netinho contribuiu muito para a minha recuperação. O neném começava a andar e eu também. Parecíamos disputar quem ia primeiro conseguir a façanha. Ele ganhou. Não muitos dias depois, experimentei a emoção de caminhar pela primeira vez, no início amparada e depois sozinha. Era final de maio, início de junho. Meu neto ia fazer aniversário e eu pude comemorar com a família. Foi um feito e tanto, porque ninguém esperava que eu estivesse recuperada em tão pouco tempo. Minha felicidade parecia não ter fim. Mas nuvens escuras e ameaçadoras se aproximavam.

quinta-feira, 18 de março de 2010

De volta para casa - parte 3

Eu lutava para me tornar independente. Tinha vergonha de ter de contar com as técnicas de enfermagem para tomar um simples banho. O pior era ter de usar fralda. Não me conformava de ter minha privacidade invadida daquele jeito, mas eu estava absolutamente impotente, incapaz de fazer minha própria higiene. Estava à mercê de outrem para que coisas tão simples e corriqueiras do dia a dia de uma pessoa comum fossem feitas para mim, não na hora que eu escolhia ou precisava, mas quando era possível. Tive de aprender a esperar. Tive de aprender a ter paciência, a não me irritar, a amansar meu espírito. Foi um longo e sofrido aprendizado para quem foi sempre rebelde e impaciente.

Era rara a noite em que eu não tinha pesadelo com o acidente. Era frequente o dia em que pensava várias vezes nele. Eu me perguntava infinitas vezes por quê? por quê? por quê? e não encontrava resposta. Destino, fatalidade, estava na hora errada no lugar errado – essas explicações nunca me satisfizeram. Fui atropelada no melhor momento da minha vida, quando me sentia infinitamente feliz e realizada. Estava amando e cheia de esperanças. E colhia finalmente os frutos do meu trabalho, da minha luta, de anos de espera por um lugar ao sol. Era injusto, muito injusto e eu não me conformava. Às vezes, achava que nada daquilo tinha acontecido, que tudo não passara de um terrível pesadelo, mas a extensa cicatriz no meu braço esquerdo me trazia de volta à realidade.

quarta-feira, 17 de março de 2010

De volta para casa - parte 2

Novamente veio a dificuldade de achar uma substituta para Nekar. As técnicas de enfermagem são moças humildes, que começam a trabalhar como empregadas domésticas. Um curso as habilita a exercer uma função cujo requisito principal é empatia, compaixão e uma paciência infinita, porque o doente perde o equilíbrio e se torna apático ou irascível. Mas o curso apenas lhes ensina o lado prático da profissão e elas são jogadas no mercado onde sofrem exploraçao física, emocional e financeira. Ganham muito pouco e se estressam demais, mas é melhor do que voltar a ser empregada doméstica. Não por causa do dinheiro e muito menos pelo desgaste físico e emocional, mas pelo status que a profissão lhes confere. É um degrau acima na escala social.

Duas semanas depois da minha chegada em casa pedi a retirada da cama hospitalar. Instalei-me na minha cama e o quarto quase voltou à normalidade. Comecei a usar a cadeira de rodas. Nunca pensei que ia me sentir tão feliz em poder andar de cadeira de rodas e a razão é que pude deixar de olhar o teto, como o fazia a maior parte do tempo, para poder olhar ao meu redor, circular pela casa, poder sair, ir à rua. Sentada, minha perspectiva se ampliava, e isso me emocionou. Tentava ficar o maior tempo possível nessa posição e só voltava à minha cama quando as dores se tornavam insuportáveis. Tomava injeções dolorosas na barriga, mas eu implorava para que me dessem, porque a dor no corpo era muito pior. Até o líquido entrar na corrente sanguínea e fazer efeito eu sentia a dor da picada da agulha. Além das injeções eu ainda tinha de tomar analgésicos. No meu quarto havia uma caixa com dezenas de remédios que eu tinha de tomar diariamente. "Meu Deus, aliviai meu sofrimento."

terça-feira, 16 de março de 2010

De volta para casa - parte 1

Não era só o anestesista que se impressionava com a minha recuperação. Na UTI, na Semi-Intensiva e até mesmo no quarto funcionários de outros setores do hospital vinham me visitar e se assombravam também. Todos diziam que era um verdadeiro milagre.

Graças a Deus não me mandaram para a UTI e seis dias depois da cirurgia para a remoção do fixador na bacia tive alta. Foi talvez o dia mais feliz da minha vida. Cheguei em casa de ambulância e fui levada numa cadeira de rodas para meu quarto. Meu quarto! Quanto tempo! Que felicidade estar em casa de novo! Sempre que viajava, detestava voltar para casa. Dessa vez, estava feliz. Três meses se haviam passado. Procurei meus gatos e eles me olharam curiosos, mas não se aproximaram. Fiquei triste, mas foi melhor assim. Ainda tinha feridas pelo corpo e o contato com eles não era recomendável. Adriana e Zini se revezavam. Nekar me abandonou.

Nos últimos tempos, quando eu ainda estava na casa de saúde, ela andava estranha. Nekar tinha uma vida muito difícil. O marido não gozava de boa saúde e praticamente não trabalhava. Era ela quem aguentava toda a carga de sustentar os dois filhos e manter a casa. Viajava longas horas de ônibus e estava sempre com sono. Nos plantões da Nekar eu dormia o tempo inteiro. E ela também. Não sentia as dores noturnas que perturbavam o sono da Adriana e da Zini. Mais tarde percebemos que ela me dava remédio para dormir, além da dose que eu normalmente recebia. Com a perspectiva de voltar para casa fui ficando nervosa, aflita, ansiosa e a nossa despedida não foi amigável.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Vanda e a menina valente - final

De longe a menina avistou Vanda na porta da escola e se assustou. Ela estava com as mãos nas cadeiras e cara de poucos amigos. Espertamente, a menina parou para refletir no que fazer. Esperou passar um adulto e lhe disse que não estava se sentindo bem. Pediu ao moço que a levasse até a sala de aula e assim foi feito. Ao passar por Vanda, esta pensou se tratar do pai da menina e a deixou passar.

Dentro da sala de aula, Vanda fazia gestos ameaçadores, querendo dizer que ia pegar a menina lá fora. A menina pensou num modo de driblar a vigilância de Vanda e, quando esta se distraiu, saiu correndo porta afora, em direção à rua. Percebendo a fuga, Vanda correu atrás, mas enquanto a menina magrinha parecia voar, Vanda, gordinha, ia ficando cada vez mais para trás. Frustrada, desistiu da perseguição.

E as duas ficaram nesse jogo de gato e rato durante durante mais dois dias. Até que, no terceiro dia, Vanda não desistiu e caiu na gargalhada. Passara a gostar daquela menininha tão astuta e tão valente e propôs, gritando de longe:

- Vamos ser amigas, eu não quero mais bater em você. Eu juro!

Desconfiada, a menina foi se aproximando aos poucos. Ia arriscar. Afinal, ela era valente, não era? Ao chegar perto de Vanda, esta se adiantou e lhe deu um abraço. E as duas ficaram amigas, porque aprenderam a respeitar uma a outra. E amizades assim duram para sempre.

domingo, 14 de março de 2010

Escritora afirma que as mulheres podem aprender a adestrar seus maridos - O Globo

Escritora afirma que as mulheres podem aprender a adestrar seus maridos - O Globo

Conselhos úteis para quem tem marido ou namorido rebelde. Não deixem de ler os comentários dos leitores. Os homens estão indignados e já sugerem os seguintes títulos "Como domar uma jararaca", "Como criar uma galinha" e tem um que diz que não adianta domá-lo porque ele é um vira-lata... vira lata de cerveja. Bem Nelson Rodrigues.

Vanda e a menina valente - parte 2

Um dia, a professora precisou se ausentar da sala de aula por uns instantes e pediu à turma que se comportasse. Ao sair da sala, porém, o tumulto se instalou, as crianças corriam e gritavam. Aborrecida, a professora voltou à sala e pediu à menina valente que anotasse num papel o nome de todos os que se comportassem mal.

Assim que a professora saiu, Vanda, a menina mais alta de todos, foi até a menininha e lhe disse em tom ameaçador:

- Se você anotar meu nome aí, vou pegar você lá fora. E incitou a turma a fazer bagunça.

A menina não se acovardou: anotou logo o nome da garota bagunceira e, em seguida, de todos aqueles que participaram da desordem. Vanda não acreditava no que via. A menina ousara desafiá-la quando todos na sala a temiam.

Momentos depois, a professora voltou, leu os nomes que a menina havia anotado e pôs todo mundo de castigo, depois da aula. Nesse dia, a meninininha pode voltar para casa tranquila, mas no dia seguinte...

sábado, 13 de março de 2010

Vanda e a menina valente - parte 1























Era uma garotinha magra e feia, mas muito valente. Desde cedo, a mãe lhe ensinou o caminho da escola, que ficava longe, e lá ia ela sozinha, sem medo. Sabia que quando crescesse iria desbravar muitos lugares e conhecer o mundo. Aqueles primeiros passos nada mais eram do que o início de uma longa caminhada.

A garotinha andava muito e no trajeto até a escola parava algumas vezes, e até se sentava no chão, para observar o percurso que a formiga saúva fazia até chegar ao buraco, se encantava com as cores das borboletas que pareciam bailar na sua frente e no verão parava para olhar para os galhos mais altos das árvores, lá onde dezenas de cigarras se uniam num canto estridente, festejando a estação e anunciando um dia caloroso.

Ela chegava cansada na escola e muitas vezes também um pouco atrasada, sempre que se distraía com a natureza. Seus pés doíam e ela tinha de recorrer à toda sua força de vontade para assistir à aula. A professora parecia gostar dela e entendia seu esforço. Na hora do lanche, ela lhe oferecia frutas e biscoitos.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O Olhar - final

Era o olhar do Jorge Amado, uns meses antes da morte do escritor. Eu o vi na Bienal do Livro, no Riocentro. Estava com a filha mais velha e tínhamos planejado passar o dia inteiro naquela espécie de banquete para os olhos. E havíamos nos fartado.

Acabamos chegando ao stand onde estava Jorge Amado e Zélia Gattai, e era um contraste vê-los juntos. Enquanto Zélia esbanjava vida, entusiasmo e deslumbramento, Jorge Amado parecia cansado, desanimado, entorpecido.

Num momento qualquer, nossos olhares se cruzaram. Talvez por distração, seu olhar se prendeu ao meu e durante não sei precisar quantos segundos pude notar o que ele mal conseguia disfarçar. Era um olhar de desalento, de quem tudo já viu e almeja apenas voltar para casa, descansar, espairecer, dormir, esquecer. Não era tristeza, mas saciedade. Um olhar de aborrecimento, descontentamento, desgosto, vazio, fastio. Um olhar de quem estava desiludido, enjoado, entojado, nauseado, entediado, agastado, fatigado, afadigado, enfadado, amofinado, irritado, desencantado, alquebrado, aplastado, apoquentado, desapontado, decepcionado.

Um olhar que me persegue, me assusta e não me deixa esquecer o quanto a vida é breve.

quinta-feira, 11 de março de 2010

O Olhar - parte 2

Havíamos chegado a um ponto em que a rua era um pouco mais larga e continuava em degraus que desciam. Foi então que a vi. Caminhando ao meu lado, Horácio olhava para o chão, recusando-se a fazer parte daquela paisagem. Ele mal conseguia disfarçar o desgosto que sentia e parecia prestes a explodir. Estava amuado e infeliz. (Momentos mais tarde, quando já havíamos chegado ao restaurante e a música inconfundível de tons arabescos invadia o ambiente, Horácio, que mal tocara na comida, me diria acabrunhado, em alta voz “se quiser que eu morra, me deixe neste lugar”. Estávamos muito próximos aos músicos e o homem que tocava a tabla entendeu o que Horácio dissera. Olhou-o com um misto de mágoa e desprezo. Nos lábios, um sorriso de escárnio.)

Nossos olhares se cruzaram. Era uma mulher um pouco gorda, vestida num xador já meio surrado. Vinha subindo as escadas. Na cabeça, o véu muçulmano. Aparentava uns quarenta e sete anos, mas era provavelmente mais jovem. Talvez tivesse a minha idade. Ela estacou e eu também. Ficamos um breve momento mirando-nos profundamente, enquanto ela suspirava de cansaço. O que ela vira no meu olhar que a fez estancar? Nunca vou saber. E só agora, muitos anos depois, sinto essa curiosidade que nunca será satisfeita. Mas eu me lembro do que percebi naquele instante. Nunca vira antes um olhar tão triste. Não era só tristeza, mas também cansaço, desânimo, desapontamento, desilusão, desejo de desistir da luta diária e sofrida, um grito de socorro, talvez. Era o olhar de uma mulher intimidada, amargurada, humilhada, ameaçada, aturdida, constrangida, reprimida, vencida, sofrida, acuada, cercada, entocada, confusa, encurralada, parada, desamparada, espantada, paralisada, desesperada. Aquele olhar me assombra até hoje.

Anos mais tarde, um outro olhar me atraiu e fascinou.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Olhar - parte 1

Eu estava em Tanger, no Marrocos, e Horacio resmungava, queixando-se da cidade, enquanto eu olhava para todo lado com admiração e curiosidade. Nossos sentimentos eram antagônicos: ele estava arrependido de ter ido aquele lugar “horroroso” e eu encantada, absolutamente fascinada com a paisagem insólita e aquela gente estranha, diferente e ao mesmo tempo tão comum. O ar estava impregnado de um odor indistinto, meio doce e meio ácido ao mesmo tempo.

Tínhamos saído bem cedo de Estepona em direção à Tarifa. De lá, pegamos o ferry-boat para Tanger. Quando a embarcação se aproximava do cais, mostrei ao Horacio como os homens andavam na rua – com os dedos mindinhos entrelaçados. Eu já havia contado que era assim nos países árabes, mas Horacio, tão descrente de tudo, duvidava de mim. Agora estava ali, diante dele.

Ao chegarmos, andamos pelas ruas de Tanger e eu me entusiasmava com as palmeiras, o encantador de serpentes e as ruas labirínticas ladeadas de casas brancas e caminhos que terminavam abruptamente. O guia ia na frente ou então certamente nos perderiamos. Fazíamos parte de um grupo que se dirigia a um restaurante onde íamos comer a comida típica do lugar e depois assistir à dança do ventre. Eu mal podia esperar. Na minha ânsia de chegar, caminhava logo atrás do guia e só me detive por causa do olhar daquela mulher.

terça-feira, 9 de março de 2010

A chegada ao "Céu" - final

Fui operada e mandada para a UTI, para meu desespero. Entrei em pânico. Foi horrível. Era um retrocesso, uma volta ao pesadelo. O homem de branco reapareceu e seu risinho cínico não deixava dúvida sobre o contentamento que estava sentindo. Aproximou-se do meu leito e, em tom falso de brincadeira, debochou de mim. Implorei ao médico que me tirasse dali e pedi ajuda a Deus. “Meu Deus, eu Vos suplico, acabe com meu sofrimento. Tenha pena de mim.” No outro dia me transferiram para a Semi-Intensiva e dias depois, fui levada de novo para o “Céu”.

Mas o tempo passava muito devagar e eu implorava ao ortopedista que me dissesse quando ele ia tirar o fixador da bacia. O médico se aborrecia com a minha insistência e não marcava nenhuma data, dizia apenas que ia tirar quando chegasse o momento certo. A minha angústia parecia não ter fim, enquanto os curativos dolorosos continuavam. Um dia, passei muito mal e senti muitas dores no local onde estava o fixador. O ortopedista veio me ver de e decidiu que era chegada a hora de marcar a cirurgia.

No dia 24 de abril, finalmente, o fixador foi retirado. Eu estava muito animada. Entrei na sala de cirurgia – era a sétima operação a que me submetia – brincando com todo mundo, pedindo ao ortopedista que aproveitasse e desse uma turbinada nos meus seios. Ao me ver, o anestesista que participou da minha primeira operação me olhou com muita seriedade e disse: “A senhora não imagina como seu estado era grave. É impressionante vê-la recuperada.” Repetiu isso várias vezes, como se não acreditasse no que via.

segunda-feira, 8 de março de 2010














Dia Internacional da Mulher

A primeira mulher a ganhar o Oscar de direção. Parabéns a Kathryn Bigelow que arrebatou 6 Oscars na cerimônia de ontem à noite.

Também felicito o conceituado diretor argentino Juan Jose Campanella pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. "El Secreto de sus Ojos" tem no elenco o excelente ator Ricardo Darin. Parabéns, Argentina, que tem levado ao público filmes da mais alta qualidade.

A chegada ao "Céu" - parte 3

O atendimento no quarto era infinitamente melhor. Contei ao médico chefe da quela unidade sobre as dores, a insônia e a constipação. Como num passe de mágica, ele corrigiu tudo isso e eu entrei em estado de graça. Estaria realmente no céu não fossem os curativos quase diários que causavam muita dor e me faziam chorar.

O fixador que puseram na minha bacia tinha provocado diversas feridas na barriga. Após o banho, vinha a enfermeira fazer o curativo. Elas sabiam que era uma área muito delicada e tomavam um cuidado extremo para causar o mínimo de dor. Além das feridas na barriga, tinha uma outra grande no joelho direito. Esta, porém, nunca me incomodou e era como se estivesse anestesiada. Mas eu gritava de dor sempre que o ortopedista fazia o curativo. Ele era bruto e descuidado e eu o temia, mas com o tempo consegui estabelecer uma boa relação com ele.

Um dia, deixei de sentir fome. As técnicas de enfermagem insistiam, mas eu me recusava a comer e essa inapetência continuou, até que os médicos desconfiaram. Os exames provaram que eu estava com um problema na vesícula e tive de ser operada de emergência, quando comecei a vomitar sem controle. Só Deus sabe o quanto me desesperei com esse revés. Uma operação significava ter de voltar à UTI e os médicos não entendiam por que eu tinha tanto medo daquela unidade.

domingo, 7 de março de 2010

A chegada ao "Céu" - parte 2

Fui levada de maca ao quarto e depois colocada numa cama macia, gostosa. Parecia realmente o céu. Ainda tinha os braços imobilizados. O esquerdo estava numa tipóia, porque o braço sofrera uma abrasão durante o atropelamento. Era uma ferida que começava no alto do braço e se estendia até a metade do antebraço. Apesar da grande extensão, o ferimento não me incomodava. O braço esquerdo estava todo imobilizado e eu aguardava impacientemente a remoção do gesso.

A chegada do ortopedista e do técnico do raios X me alegrou. Eles iam libertar meu braço direito, finalmente. Era a segunda vez que tentavam e eu tinha de rezar para dar tudo certo. E deu. O que não deu certo foi que eu não conseguia mover a mão e os dedos. Estavam endurecidos e doloridos e a fisioterapia não se ocupava dessa parte do tratamento. Eu teria de ir buscar um terapeuta ocupacional quando tivesse alta hospitalar. Não me conformei, não aceitei aquela restrição. Falei com todos os fisioterapeutas e um deles, embora não exercitasse minha mão, me ensinou como fazer. E eu seguia religiosamente os conselhos dele. Muitas vezes desanimei. A mão não respondia. Pedia as técnicas de enfermagem que me acompanhavam que massageassem mão e dedos. Lentamente, fui recuperando poucos movimentos até chegar a assinar meu nome com letra trêmula. Aquilo foi uma vitória.

sábado, 6 de março de 2010

A chegada ao "Céu" - parte 1

Toda vez que me sentia abatida, as técnicas de enfermagem cuidavam de me fazer ver que obstáculos são normais no processo de recuperação, o que importava era eu estar viva. Ouvi isso tantas e tantas vezes... Viver, no entanto, requeria muita paciência e coragem. E eu muitas vezes fraquejava. As dores, a insônia e uma constipação que eu nunca tivera antes me atormentavam. Desistir parecia tentador.

Mais uma técnica de enfermagem veio se juntar a Adriana e Nekar. Era a Zini, uma bela e simpática moça. Apesar de jovem, já era mãe de quatro filhos, a mais velha com vinte anos. Tinha uma história de vida muito acidentada. Fora negligenciada pela mãe e não conhecera o pai. Morava longe e o pai de seus filhos tinha idade para ser seu pai também. Ele a explorava, gastando o salário que ela ganhava com tanto sacrifício. Mas Zini não pensava em deixá-lo e se conformava com aquela situação. Zini era generosa, mas profundamente imatura e muito inconstante. Tinha a idade emocional de um bebê, mas ela me ajudou muito.

Finalmente, chegou a notícia de que eu iria para um quarto particular – o Céu, em comparação com a UTI (o Inferno) e a Semi-Intensiva (o Purgatório). Foi um dia muito feliz, ansiosamente sonhado e aguardado. Os técnicos de enfermagem me contavam o que soavam maravilhas para os meus ouvidos e eu mal podia esperar o momento da transferência.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Esqueceram de mim 2

Raíssa Souza da Silva era o nome da menina que morreu em pleno Carnaval, vítima da violência de um monstro que até hoje não foi encontrado. Ela morreu enquanto a mãe fumava crack. Raíssa foi uma criança negligenciada, mesmo depois de morta. São essas crianças as vítimas escolhidas pelos pedófilos. Mas há crianças ricas que também são negligenciadas pelos pais. Vou contar a terrível história de uma delas.

Eles eram muito ricos. O pai era um grande e importante construtor e a família desfrutava de todo o conforto que o dinheiro podia proporcionar. Moravam numa mansão. Juntos, na foto que ficava no porta-retrato de moldura prateada, visível assim que se entrava no salão principal, qualquer um diria que formavam,sem dúvida ,uma família unida e feliz. A menina e seus irmãos tinham a melhor roupa, o melhor colégio, a melhor comida e, aparentemente, tudo o que precisavam.

Um dia, o pai levou a menina consigo ao trabalho - um enorme canteiro de obras. Talvez quisesse que ela, desde cedo, entendesse seu lugar na sociedade e conhecesse o que herdaria no futuro. Distraiu-se com seus afazeres e acabou se esquecendo de cuidar da filha, que tinha apenas cinco anos.

Andando de um lado para o outro, correndo às vezes, a menina acabou escorregando e caindo num buraco. Lá do fundo, ela gritou muito, mas ninguém a ouviu. O dia passou, a noite chegou e ninguém apareceu para tirá-la daquele lugar. Ninguém sentiu falta da menina.

O pai voltou para casa. Ao chegar, a mulher o recebeu e não perguntou pela filha. Ninguém percebeu sua ausência, nem os irmãos, nem os empregados. E foram todos dormir. Lá no buraco, sozinha e com frio, a menina sofreu toda a solidão e desamparo de quem está só no mundo. Teve a noite mais terrível da sua vida. Uma noite longa e triste que a atormenta até hoje.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O Colar - final

Um dia, a tia chamou todos os sobrinhos para almoçarem na casa dela. Depois de comer, ficamos brincando no quintal. Nossa brincadeira favorita era irritar os gansos, que corriam atrás de nós a grasnar enfurecidos, ameaçando-nos com seus bicos afiados. Com tanta correria, tive sede. Entrei na cozinha para beber água e vi que a tia dava um presente para uma senhora muito humilde. Quando esta o desembrulhou, vi que era o colar.

As férias de verão terminaram e voltamos para casa. Com os afazeres da escola deixei de pensar no colar. E o tempo passou. Um dia, quando estava concentrada fazendo meu dever de casa, a empregada perguntou por minha mãe. Ela havia saído muito cedo para fazer compras no mercado. Era de novo o aniversário de mamãe e ela havia prometido um jantar delicioso para a família. Esperávamos ansiosas a chegada de papai, que sempre surpreendia mamãe com seus presentes maravilhosos, quase mágicos. E a gente tentava adivinhar o que ele traria daquela vez.

Por volta do meio dia, quando mamãe voltou, a empregada entregou-lhe um pacote embalado em papel colorido. Curiosa, cheguei perto para ver o que era. Mamãe agradeceu e desembrulhou o presente. Era uma caixa e dentro dela estava o colar, aquele mesmo que mamãe tanto detestara. Olhei para a mamãe e ela mal conseguia disfarçar a surpresa. Ficou confusa por um tempo e depois sorriu para mim com aquele jeito maroto e cúmplice que lhe davam um ar encantador. Naquele momento tive certeza de que o colar finalmente seria meu, e durante muito tempo aquela piscadela da mamãe foi o meu melhor presente.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O Colar - parte 2

As férias chegaram e minha mãe nos mandou todos para a casa da vovó. Lá, eu encontraria os meus primos e as nossas brincadeiras recomeçariam. Eu gostava de me deitar no braço forte do tamarineiro e descansar ali das brincadeiras sempre ofegantes, enquanto olhava para o alto da árvore e via seu manto de folhas rendilhadas que quase apagavam o céu. Era meu recanto preferido para sonhar. Só o cheiro inesquecível do café à moda antiga que vovó preparava, passando os grãos pelo moedor, conseguia me tirar daquele estado onírico. Nem mesmo os gritos dos meus primos conseguiam tal proeza. Meus sonhos eram substituídos, então, por sonhos de verdade - aqueles pãezinhos doces -, que nunca foram tão gostosos e nunca cheiraram tão bem como no tempo de infância. Nos braços do tamarineiro eu me via adulta, independente e livre da submissão que as crianças da minha época sofriam. Eu me via grande, dona do meu destino. Nunca vou esquecer a felicidade que senti nesses momentos.

Um dia, minha prima apareceu usando um colar parecido com aquele que minha mãe dera à conhecida. Questionei a origem do colar, mas minha prima foi reticente. Ela dividiu uma parte dele comigo e eu pude, pela primeira vez, transformar meu sonho em realidade. Era mesmo gostoso brincar com o colar. No dia seguinte, porém, a prima veio brincar e não o trouxe. Perguntei o que acontecera e ela me disse que a mãe o quis de volta. Felizmente, a decepção não durou muito tempo, porque sempre tínhamos muito o que fazer e o pique-bandeira ainda nem havia começado.

terça-feira, 2 de março de 2010

O Colar - parte 1

Minha mãe ganhou um colar no dia do aniversário dela. Era um colar muito feio, mas eu, nos meus oito anos, achei-o lindo. Tinha contas multicoloridas e porque era de plástico, com pininhos de encaixe, podia ser encurtado, alongado, cruzado, dobrado, enfim, o colar tinha mil possibilidades, mas minha mãe não gostou dele. Na primeira oportunidade, ela o embrulhou e deu de presente para uma conhecida, o que me desgostou. Esperava, secretamente, que ela o desse para mim e jah me imaginava usando-o em brincadeiras com as minhas amigas.

Estava presente quando minha mãe deu o colar. Era impressão minha ou a conhecida também não o tinha apreciado? Um mau presente sempre causa constrangimento para ambas as partes. Acho que essa foi uma das melhores lições que aprendi bem cedo na vida.

Fiquei com inveja dos filhos dessa mulher. Era possível que ela não usasse nunca o colar. Quem sabe ela não o daria para seus filhos ou até que deixasse eles brincarem com ele de vez em quando? Tentei me aproximar ainda mais deles e reforçar a amizade. A casa estava cheia de gente, havia outras crianças na sala e eu os chamei para um pique-esconde lá fora no quintal. Se me conhecessem bem e gostassem de mim, poderiam talvez me convidar um dia para brincar com o colar na casa deles. Mas o tempo passou e não recebi convite algum.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - final

Mais de trinta anos depois, numa aula de hidroginástica, conheci uma mulher muito simpática. Volta e meia, conversávamos. Um dia, no final da aula, num bate papo informal que se estendeu além dos anteriores, fiquei sabendo que ela era amiga íntima da judia que se casara com o Paulo. Estranhos caminhos do destino.
Durante todos aqueles anos alimentei uma curiosidade quase mórbida a respeito dele. Buscava nos guias telefônicos antigos seu endereço e uma vez, casualmente, fui parar no mesmo prédio onde ele morava.

Foi essa mulher que me disse que Paulo acabara de falecer. Foi vítima de uma cirrose, provocada pelo excesso de bebida. O que o teria feito beber tanto? E por que não lutou pela vida, aceitando a morte com mansidão? Era setembro, mês do aniversário que ele não fez.

A mulher que acabou me trazendo o passado de volta havia trabalhado na mesma empresa onde eu conhecera Paulo e Silvio, mas eu nunca a vira. Atrevi-me a perguntar pelo Silvio e fiquei chocada com o que ela me contou. Ele se matara, alguns anos antes, jogando-se da janela daquele apartamento triste onde morava.

Ne pleure pas, Jeannette,
Tra la la la la la la la la la la la la,
Ne pleure pas, Jeannette,
Nous te marierons {x2}
Avec le fils d'un prince, Tra la la ...
Avec le fils d'un prince,
Ou celui d'un baron {x2}

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...