terça-feira, 28 de novembro de 2017

VIDA NA ROÇA – AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS – III

Os dias que antecederam a Folia de Reis foram de muito rebuliço na fazenda. Dona Geny, a cozinheira que vivia de cara emburrada, trouxe uma assistente, sua filha Lela, uma menina magra, de cabelos desgrenhados e roupas muito velhas e encardidas. Enquanto brincávamos no quintal, Lela nos olhava com ar triste e distraído e sua mãe vivia ralhando com ela. Devia ter a nossa idade, entre 13 e 15 anos, mas era mais baixa e menos desenvolvida. Passados tantos anos ainda consigo ver perfeitamente as duas. Dona Geny era mulata, magra e movia-se com dificuldade. Com o tempo, percebi que uma de suas pernas era mais curta que a outra. Era baixinha, excelente cozinheira e, apesar do ar carrancudo, sempre sorria para mim quando, não podendo resistir ao cheiro da comida que se espalhava pela casa, aproxima-me do fogão e lhe pedia para provar um quitute. Ela o dava de bom grado, ao contrário da minha mãe que não admitia que eu comesse nada antes das refeições – o que me deixava sempre muito contrariada. Ameaçava não comer mais nada, mas minha mãe não se importava. Sabia que era chantagem. Dona Nadir, mãe de Vitória e Ledinha, não se atrevia a se meter na cozinha – aquela era a seara da Dona Geny e era ela quem decidia o que íamos comer a cada dia. E era tudo sempre muito delicioso. Se fechar meus olhos agora, acho que ainda posso sentir o gosto da comida dela.

Nos dias que antecederam a Folia de Reis, Dona Geny andava de um lado para o outro, atarefadíssima, preparando quitutes para receber os foliões. Mal pude acreditar quando a vi fazendo olho de sogra, meu doce preferido. Fez um prato enorme e o deixou na cristaleira, à mercê da minha gula, e eu ia sorrateiramente até a sala, me certificava de que não havia ninguém e comia um doce. Mais tarde, voltava e comia outro, e ficava assim o dia inteiro - uma compulsão. E eu tinha de ajeitar os doces na bandeja para não deixar buracos. Ou será que Dona Geny os preenchia, ciente que devia estar da minha gulodice? 


Vitória andava lá pras bandas de Macuco provando o vestido de 15 anos na costureira. Não me levou, porque queria que fosse surpresa. Só voltei a Macuco uma vez, quando foram comprar o tecido. Nunca tinha visto nada tão bonito e eu certamente faria feio com meu antigo vestido de nylon, fora de moda, que minha mãe mandara fazer para o casamento do meu tio, três anos atrás. Já estava meio apertado, principalmente a blusa, que achatava meus seios. Quando o vesti pela primeira vez, achei-o bonito, até que começou a me picar e a me dar alergia. Mas era o único vestido de festa que eu tinha.
Vitória voltou de Macuco e voltamos às cavalgadas matinais e aos banhos de rio, até que um dia, ao voltarmos para a fazenda, vimos à distância um grupo se aproximando da casa e Vitória anunciou: “Vamos depressa que está chegando a Folia de Reis.” 


Chegamos pouco depois dos foliões, que pararam na entrada da varanda da casa. Gilberto, irmão mais novo de Vitória e Ledinha, gritava com a voz dos seus 4 aninhos: “E toca, sanfoneiro!”. E o sanfoneiro tocava: tararatantan-tantan-tantan, uma melodia que nunca esqueci, enquanto o palhaço dançava e fazia malabarismos. Ele usava uma máscara e só se lhe viam os olhos. Um arrepio de medo percorreu meu corpo. O palhaço tinha os mesmos olhos famintos e selvagens, os mesmos olhos de predador do seu Doquinha, pai de Vitória e Ledinha.

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