domingo, 7 de março de 2010

A chegada ao "Céu" - parte 2

Fui levada de maca ao quarto e depois colocada numa cama macia, gostosa. Parecia realmente o céu. Ainda tinha os braços imobilizados. O esquerdo estava numa tipóia, porque o braço sofrera uma abrasão durante o atropelamento. Era uma ferida que começava no alto do braço e se estendia até a metade do antebraço. Apesar da grande extensão, o ferimento não me incomodava. O braço esquerdo estava todo imobilizado e eu aguardava impacientemente a remoção do gesso.

A chegada do ortopedista e do técnico do raios X me alegrou. Eles iam libertar meu braço direito, finalmente. Era a segunda vez que tentavam e eu tinha de rezar para dar tudo certo. E deu. O que não deu certo foi que eu não conseguia mover a mão e os dedos. Estavam endurecidos e doloridos e a fisioterapia não se ocupava dessa parte do tratamento. Eu teria de ir buscar um terapeuta ocupacional quando tivesse alta hospitalar. Não me conformei, não aceitei aquela restrição. Falei com todos os fisioterapeutas e um deles, embora não exercitasse minha mão, me ensinou como fazer. E eu seguia religiosamente os conselhos dele. Muitas vezes desanimei. A mão não respondia. Pedia as técnicas de enfermagem que me acompanhavam que massageassem mão e dedos. Lentamente, fui recuperando poucos movimentos até chegar a assinar meu nome com letra trêmula. Aquilo foi uma vitória.

sábado, 6 de março de 2010

A chegada ao "Céu" - parte 1

Toda vez que me sentia abatida, as técnicas de enfermagem cuidavam de me fazer ver que obstáculos são normais no processo de recuperação, o que importava era eu estar viva. Ouvi isso tantas e tantas vezes... Viver, no entanto, requeria muita paciência e coragem. E eu muitas vezes fraquejava. As dores, a insônia e uma constipação que eu nunca tivera antes me atormentavam. Desistir parecia tentador.

Mais uma técnica de enfermagem veio se juntar a Adriana e Nekar. Era a Zini, uma bela e simpática moça. Apesar de jovem, já era mãe de quatro filhos, a mais velha com vinte anos. Tinha uma história de vida muito acidentada. Fora negligenciada pela mãe e não conhecera o pai. Morava longe e o pai de seus filhos tinha idade para ser seu pai também. Ele a explorava, gastando o salário que ela ganhava com tanto sacrifício. Mas Zini não pensava em deixá-lo e se conformava com aquela situação. Zini era generosa, mas profundamente imatura e muito inconstante. Tinha a idade emocional de um bebê, mas ela me ajudou muito.

Finalmente, chegou a notícia de que eu iria para um quarto particular – o Céu, em comparação com a UTI (o Inferno) e a Semi-Intensiva (o Purgatório). Foi um dia muito feliz, ansiosamente sonhado e aguardado. Os técnicos de enfermagem me contavam o que soavam maravilhas para os meus ouvidos e eu mal podia esperar o momento da transferência.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Esqueceram de mim 2

Raíssa Souza da Silva era o nome da menina que morreu em pleno Carnaval, vítima da violência de um monstro que até hoje não foi encontrado. Ela morreu enquanto a mãe fumava crack. Raíssa foi uma criança negligenciada, mesmo depois de morta. São essas crianças as vítimas escolhidas pelos pedófilos. Mas há crianças ricas que também são negligenciadas pelos pais. Vou contar a terrível história de uma delas.

Eles eram muito ricos. O pai era um grande e importante construtor e a família desfrutava de todo o conforto que o dinheiro podia proporcionar. Moravam numa mansão. Juntos, na foto que ficava no porta-retrato de moldura prateada, visível assim que se entrava no salão principal, qualquer um diria que formavam,sem dúvida ,uma família unida e feliz. A menina e seus irmãos tinham a melhor roupa, o melhor colégio, a melhor comida e, aparentemente, tudo o que precisavam.

Um dia, o pai levou a menina consigo ao trabalho - um enorme canteiro de obras. Talvez quisesse que ela, desde cedo, entendesse seu lugar na sociedade e conhecesse o que herdaria no futuro. Distraiu-se com seus afazeres e acabou se esquecendo de cuidar da filha, que tinha apenas cinco anos.

Andando de um lado para o outro, correndo às vezes, a menina acabou escorregando e caindo num buraco. Lá do fundo, ela gritou muito, mas ninguém a ouviu. O dia passou, a noite chegou e ninguém apareceu para tirá-la daquele lugar. Ninguém sentiu falta da menina.

O pai voltou para casa. Ao chegar, a mulher o recebeu e não perguntou pela filha. Ninguém percebeu sua ausência, nem os irmãos, nem os empregados. E foram todos dormir. Lá no buraco, sozinha e com frio, a menina sofreu toda a solidão e desamparo de quem está só no mundo. Teve a noite mais terrível da sua vida. Uma noite longa e triste que a atormenta até hoje.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O Colar - final

Um dia, a tia chamou todos os sobrinhos para almoçarem na casa dela. Depois de comer, ficamos brincando no quintal. Nossa brincadeira favorita era irritar os gansos, que corriam atrás de nós a grasnar enfurecidos, ameaçando-nos com seus bicos afiados. Com tanta correria, tive sede. Entrei na cozinha para beber água e vi que a tia dava um presente para uma senhora muito humilde. Quando esta o desembrulhou, vi que era o colar.

As férias de verão terminaram e voltamos para casa. Com os afazeres da escola deixei de pensar no colar. E o tempo passou. Um dia, quando estava concentrada fazendo meu dever de casa, a empregada perguntou por minha mãe. Ela havia saído muito cedo para fazer compras no mercado. Era de novo o aniversário de mamãe e ela havia prometido um jantar delicioso para a família. Esperávamos ansiosas a chegada de papai, que sempre surpreendia mamãe com seus presentes maravilhosos, quase mágicos. E a gente tentava adivinhar o que ele traria daquela vez.

Por volta do meio dia, quando mamãe voltou, a empregada entregou-lhe um pacote embalado em papel colorido. Curiosa, cheguei perto para ver o que era. Mamãe agradeceu e desembrulhou o presente. Era uma caixa e dentro dela estava o colar, aquele mesmo que mamãe tanto detestara. Olhei para a mamãe e ela mal conseguia disfarçar a surpresa. Ficou confusa por um tempo e depois sorriu para mim com aquele jeito maroto e cúmplice que lhe davam um ar encantador. Naquele momento tive certeza de que o colar finalmente seria meu, e durante muito tempo aquela piscadela da mamãe foi o meu melhor presente.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O Colar - parte 2

As férias chegaram e minha mãe nos mandou todos para a casa da vovó. Lá, eu encontraria os meus primos e as nossas brincadeiras recomeçariam. Eu gostava de me deitar no braço forte do tamarineiro e descansar ali das brincadeiras sempre ofegantes, enquanto olhava para o alto da árvore e via seu manto de folhas rendilhadas que quase apagavam o céu. Era meu recanto preferido para sonhar. Só o cheiro inesquecível do café à moda antiga que vovó preparava, passando os grãos pelo moedor, conseguia me tirar daquele estado onírico. Nem mesmo os gritos dos meus primos conseguiam tal proeza. Meus sonhos eram substituídos, então, por sonhos de verdade - aqueles pãezinhos doces -, que nunca foram tão gostosos e nunca cheiraram tão bem como no tempo de infância. Nos braços do tamarineiro eu me via adulta, independente e livre da submissão que as crianças da minha época sofriam. Eu me via grande, dona do meu destino. Nunca vou esquecer a felicidade que senti nesses momentos.

Um dia, minha prima apareceu usando um colar parecido com aquele que minha mãe dera à conhecida. Questionei a origem do colar, mas minha prima foi reticente. Ela dividiu uma parte dele comigo e eu pude, pela primeira vez, transformar meu sonho em realidade. Era mesmo gostoso brincar com o colar. No dia seguinte, porém, a prima veio brincar e não o trouxe. Perguntei o que acontecera e ela me disse que a mãe o quis de volta. Felizmente, a decepção não durou muito tempo, porque sempre tínhamos muito o que fazer e o pique-bandeira ainda nem havia começado.

terça-feira, 2 de março de 2010

O Colar - parte 1

Minha mãe ganhou um colar no dia do aniversário dela. Era um colar muito feio, mas eu, nos meus oito anos, achei-o lindo. Tinha contas multicoloridas e porque era de plástico, com pininhos de encaixe, podia ser encurtado, alongado, cruzado, dobrado, enfim, o colar tinha mil possibilidades, mas minha mãe não gostou dele. Na primeira oportunidade, ela o embrulhou e deu de presente para uma conhecida, o que me desgostou. Esperava, secretamente, que ela o desse para mim e jah me imaginava usando-o em brincadeiras com as minhas amigas.

Estava presente quando minha mãe deu o colar. Era impressão minha ou a conhecida também não o tinha apreciado? Um mau presente sempre causa constrangimento para ambas as partes. Acho que essa foi uma das melhores lições que aprendi bem cedo na vida.

Fiquei com inveja dos filhos dessa mulher. Era possível que ela não usasse nunca o colar. Quem sabe ela não o daria para seus filhos ou até que deixasse eles brincarem com ele de vez em quando? Tentei me aproximar ainda mais deles e reforçar a amizade. A casa estava cheia de gente, havia outras crianças na sala e eu os chamei para um pique-esconde lá fora no quintal. Se me conhecessem bem e gostassem de mim, poderiam talvez me convidar um dia para brincar com o colar na casa deles. Mas o tempo passou e não recebi convite algum.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A terceira sinfonia de Brahms - final

Mais de trinta anos depois, numa aula de hidroginástica, conheci uma mulher muito simpática. Volta e meia, conversávamos. Um dia, no final da aula, num bate papo informal que se estendeu além dos anteriores, fiquei sabendo que ela era amiga íntima da judia que se casara com o Paulo. Estranhos caminhos do destino.
Durante todos aqueles anos alimentei uma curiosidade quase mórbida a respeito dele. Buscava nos guias telefônicos antigos seu endereço e uma vez, casualmente, fui parar no mesmo prédio onde ele morava.

Foi essa mulher que me disse que Paulo acabara de falecer. Foi vítima de uma cirrose, provocada pelo excesso de bebida. O que o teria feito beber tanto? E por que não lutou pela vida, aceitando a morte com mansidão? Era setembro, mês do aniversário que ele não fez.

A mulher que acabou me trazendo o passado de volta havia trabalhado na mesma empresa onde eu conhecera Paulo e Silvio, mas eu nunca a vira. Atrevi-me a perguntar pelo Silvio e fiquei chocada com o que ela me contou. Ele se matara, alguns anos antes, jogando-se da janela daquele apartamento triste onde morava.

Ne pleure pas, Jeannette,
Tra la la la la la la la la la la la la,
Ne pleure pas, Jeannette,
Nous te marierons {x2}
Avec le fils d'un prince, Tra la la ...
Avec le fils d'un prince,
Ou celui d'un baron {x2}

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...