quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Trocando em miúdos

Acordei pensando nas cigarras. Por onde elas têm andado? Pra mim, verão de verdade tem de ter coisas como o canto das cigarras, flamboyants floridos, muita fruta e água de coco. Mas cigarras e flamboyants são imprescindíveis. Essas árvores começam a florescer no final da primavera e mantém a cor flamejante até o final de dezembro, início de janeiro. Não me lembrava que as cigarras começavam a cantar bem cedo pela manhã. Lembro-me que elas renovam o canto no final da tarde. São apenas 6horas da manhã e as ouço cantar. Volto a ter esperança no verão. Mas não é delas que vou falar.

Vou falar daquele verão de quase trinta anos atrás, quando consegui ter coragem de deixar meu marido. Aquela música martelava na minha cabeça enquanto eu separava o que ia levar comigo.

“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu”

Foi então que descobri que tinha apenas a capa do Brahms – o disco tinha sumido. A terceira sinfonia de Brahms havia desaparecido e a culpa era minha, que não a protegi. Nunca soube que fim meu marido deu àquela sinfonia e fiquei anos sem ouvi-la.

Precisava ter forças e correr contra o tempo. Ele havia saído para trabalhar bem cedo e eu tinha apenas algumas horas para empacotar tudo, até a Kombi chegar. Ia deixar toda a mobília e levar apenas objetos pessoais, minhas plantas favoritas, além dos discos e livros.

“Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças”

Logo as meninas acordaram e, assustadas com a bagunça, perguntavam agoniadas: para onde vamos? O que está acontecendo? Não quero ir pra lugar nenhum. Meu advogado me orientara a fazer a mudança daquele jeito, sorrateiramente, e eu tinha pensado apenas nas coisas práticas. Não me ocorreu que as meninas poderiam reagir mal à separação. Era especialmente por elas que eu estava me separando. A nossa vida em comum tinha se transformado num inferno e elas começavam a sofrer as conseqüências, apresentando sintomas preocupantes.

“Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter”

Não sei como superei todos os obstáculos e consegui sair daquele lugar. As meninas choravam. A empregada que nos acompanhava estava atônita. Não derramei uma única lágrima.

“Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado”

Tinha a meu favor a juventude. Quando se é jovem é fácil ter esperança e acreditar no futuro. Eu sabia que ia dar tudo certo e isso me confortava. Sabia que minha vida, uma vida de verdade, estava começando naquele momento.

“Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.”

6 comentários:

petloveshaon disse...

Engraçado,eu sou a únca que não me lembro de nada...bom,melhor assim né?...rsrsrsrs
Sua coragem nos fortaleceu!
beijosssss

Unknown disse...

Adorei os versos. São de uma mesma música? De quem são?
Agora sabendo desta sua história, vejo que você desde muito nova já conseguia dar a volta por cima.
Virei sua fã.

Bjks,

Albaniza

Patricia Peternel disse...

"Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido..."

Aurora Boreal disse...

Albaniza:
Tentei mandar resposta para o seu e-mail, mas voltou. A letra é da música Trocando em Miúdos,de Chico Buarque e Francis Hime. Que bom que você gostou do meu texto e vai me acompanhar.
Beijos, querida.

Aurora Boreal disse...

Patricia:
"Começar de novo" vem numa segunda fase. Aguarde.
Beijos, minha linda.

Aurora Boreal disse...

Daniela:
Tenha sempre coragem,minha linda.
Beijos.

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