quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ó pedaço de mim

Me lembro, quando menina, de olhar para as pessoas à minha volta - tios, tias, avós, amigos e amigas da família - e pensar no quanto a vida dessas pessoas carecia de sentido. Elas viviam exatamente como as saúvas que empesteavam o quintal da minha casa e que eu gostava tanto de olhar com curiosidade. Não havia uma só delas que tivesse realizado as façanhas dos livros que eu gostava de ler. E eu achava que viver era muito mais, era como nas histórias que enchiam minha imaginação e me faziam sonhar. Viver era viajar pelo mundo, enfrentar perigos e saborear a aventura de cada momento. Viver, em toda plenitude, era assim.

As pessoas me pareciam conformadas em viver uma vida comum: cresciam, casavam, tinham filhos, netos, às vezes bisnetos, e depois morriam, sem nunca terem vivido sequer uma aventura. Eu jurava para mim mesmo que comigo seria diferente. Minha vida não seria como a da minha prima, por exemplo, que cumpriu exatamente o destino que lhe foi reservado. Morreu cedo, minha prima, deixando filhos e netos tal como sua mãe, sua avó, bisavó, tetravó, tataravó... Cumpriu uma função biológica e só. De vez em quando nos lembramos dela com carinho e tristeza. Não, comigo seria diferente. Era assim que pensava; foi assim que vivi.

Comecei mal, porém. Enveredei pelo mesmo caminho, mas em algum momento mudei meu rumo - ou a vida me fez mudar. Não, eu precisa viver, realizar meus sonhos. Havia muito a conhecer, aprender, conquistar, vencer. E foi assim que comecei a viajar. Passei por cima de muitas regras e mandamentos. Precisava realizar meu sonho. E realizei. Fui a quase todos os lugares que queria ir. Vivi toda a plenitude do momento. E me senti imensamente feliz.

O que eu não sabia é que ao realizar meus sonhos, ao tornar realidade o que parecia apenas sonho, transpus uma fronteira, fui para o outro lado. Não sei se acontece com todo mundo, mas tive a ilusão da imortalidade ou a impressão de que a morte ainda estava muito distante de mim. Se tudo era possível, querer era poder. Não estava preparada para o que ia me acontecer. Não, eu não era imortal.

O acidente foi um terremoto que sacudiu a minha vida, me virou de cabeça pra baixo, abalou minha estrutura e minha crença. Então era assim? De uma hora pra outra se morria? Era tão fácil morrer? E como ficariam meus sonhos realizados, minhas impressões de viagem, minhas alegrias e minhas tristezas? O que seria desse tesouro? Ficariam órfãos de mim? Seriam jogados no lixo, simplesmente? Que sentido havia naquela morte repentina?

Vencer a morte, sobreviver não trouxe resposta para meus questionamentos. Não me trouxe alívio, não me trouxe paz. Tudo para mim carecia de sentido. Não sou melhor do que as pessoas que vêm ao mundo para cumprir um destino biológico. Elas, pelo menos, não se preocupam em deixar tesouro nenhum para trás. Sabem que tudo é transitório, que a grande aventura da vida é ver seus filhos crescerem, é esperar a chegada dos netos e não ter a ilusão de que a morte está muito distante. Não têm ilusões, como eu tive. Quiçá sejam até muito mais felizes do que eu? Talvez tenham vivido muito mais intensamente do que eu e com certeza viveram menos apressadamente do que eu.

Ter uma família, filhos e netos - com sorte, também bisnetos - é a maior aventura que o ser humano pode empreender. O resto é pura ilusão. Nossos sonhos e conquistas viram pó; são tesouros valiosos apenas para nós e não temos com quem dividi-los. Ao morrermos, eles também se acabam; tal qual os objetos que colecionamos (às vezes com tanto carinho) durante a vida, acabam se perdendo para sempre. Com sorte, tornamo-nos uma doce lembrança nos corações e mentes das pessoas que nos quiseram bem. A vida é simples assim.

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