quarta-feira, 22 de novembro de 2017

VIDA NA ROÇA - AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS

Quando fiz a limpeza no quartinho da bagunça, queria mesmo era encontrar a caixa grande, onde guardei, durante tantos anos, todas as cartas, bilhetes de antigos namorados, cartões de Natal, de aniversário, cartas e cartões das minhas filhas. Sim, sou uma pessoa sentimental a ponto de nunca ter jogado fora nenhuma correspondência recebida.

Abri a caixa, organizei aquela pilha confusa, separando-a pelos remetentes. Fiquei surpresa de encontrar as cartas de Vitória e Ledinha, duas amigas da adolescência, que tanto amávamos. A avó delas era nossa vizinha, uma senhora que aparentava ter uns 200 anos, tamanha era a quantidade de rugas naquele rosto marcado pelo tempo e a vida dura da roça. Até hoje, nunca vi rosto tão enrugado. 


Vitoria e Ledinha moravam numa fazenda em Macuco e passavam as férias na casa da avó e seus quatro tios. Quando elas chegavam, mal baixavam as malas, iam correndo lá pra casa e aí nos abraçávamos, rindo e chorando de pura alegria e saudade. Puxa, aquilo sim era felicidade! Depois, íamos para o quarto da minha mãe e lá nos sentávamos na beira da cama para conversar. Era uma estratégia, porque Vitória era engraçadíssima, conhecia todo mundo e sabia contar mil histórias. Era a nossa Sheherazade. Contava histórias como a de uma vez em que a mãe dela pegou um cinto para dar umas cintadas na Ledinha. O pai agarrou a outra ponta do cinto e ficaram os dois discutindo aos berros, cada um puxando para um lado. Vitória foi lá na gaveta, tirou uma super tesoura e cortou o cinto ao meio, deixando cada um com um cotoco. Era numa hora dessas que nos deitávamos na cama da mamãe para rir até não poder mais, imaginando a cena cômica. Vitória também era muito namoradeira. Na viagem de Macuco ao Rio, ela sempre conhecia algum rapaz e o namorava; na volta para Macuco, conhecia outro e namorava também. Certa vez, comentou: “Não fico de mal com nenhum ex-namorado.” E Ledinha contestou rapidamente: “Se você ficasse de mal, não falaria com rapaz nenhum em Macuco.” Mais outras gargalhadas na cama da mamãe.


Mas toda luz tem sua sombra, como descobriram os Renascentistas com o “Chiaroscuro”, uma revolução que mudou a pintura chapada da Idade Média. Vitória e Leda roubavam, eram cleptomaníacas. Quando chegavam assim de surpresa, ao saírem fazíamos um inventário das coisas que tinham levado: um grampinho ou um arco de cabelo, uma escova mal-ajambrada, uma blusa surrada... nada de valor e não entendíamos o porquê. Simplesmente íamos sorrateiramente na casa da avó delas e pegávamos tudo de volta. E tínhamos de deixar tudo trancado, escondido, para que não roubassem de novo. Nossa amizade transcendia qualquer deslize, qualquer fraqueza moral. Era o que de melhor tínhamos e não queríamos nunca perder. 


Hoje em dia, acho que sei o que as faziam ter esse desvio de conduta, mas contarei no próximo post, porque este está grande demais.

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