sábado, 25 de novembro de 2017

VIDA NA ROÇA – AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS – II

Vitória ia fazer 15 anos e minha mãe deixou que eu acompanhasse a tia Maria para a festança na fazenda. Eu ia ficar uns dias fora de casa e aquela era a primeira vez para mim, que sonhava conhecer o mundo. Acompanhei a tia da Vitória numa longa e inesquecível viagem, que me fez sentir o sabor, o cheiro, a cor e o som da liberdade. Estaria longe das garras sempre tão seguras da minha mãe, como na música do Ivan Lins. A sensação de liberdade que senti naquela viagem me acompanharia pelo resto da vida, fazendo-me lutar por ela - nenhuma garra, nenhum obstáculo, ninguém tiraria isso de mim...”abra as asas sobre mim, ó Senhora Liberdade...” Nova Friburgo, Bom Jardim, Cordeiro, desfilavam diante dos meus olhos ávidos e deslumbrados até chegarmos finalmente a Macuco, na época um vilarejo. 

De Macuco até a fazenda em São Sebastião do Alto era outro estirão, cheio de sacolejos. No caminho, só mato, árvores e muito boi. Chegamos à fazenda já quase noite, com os lampiões acesos. No dia seguinte, às 5 da manhã, me acordaram. Já era tarde para eles, os peões estavam desde cedo no campo. Ensinaram-me a levar a caneca até o estábulo e pegar o leite quentinho da vaca. Na casa, a lenha no fogão assava o bolo de milho. Depois do café, pegávamos os cavalos, saíamos pelos campos rodeados de montanhas aveludadas e tomávamos banho de rio. Rapidamente aprendi a montar e a cavalgar. Voltávamos às 9, quando serviam o almoço e às 4 da tarde, depois do jantar, ficávamos conversando na varanda até anoitecer, quando tínhamos de nos recolher aos nossos quartos. 

Acostumada a dormir mais tarde, custava a pegar no sono. E foi então que comecei a ver coisas estranhas acontecendo. O pai da Vitória e Ledinha zanzava pela casa, quando todos dormiam, qual alma penada. Para onde ia aquele homem? No dia seguinte, a mesma cena se repetia. Passei a ter medo dele, daquele olhar faminto e selvagem, olhos de predador. Pulava para a cama da tia Maria e me grudava nela, colocava objetos atrás da porta e meu sono, sempre tão pesado, tornou-se leve. Já não era mais divertido. Tinha sono durante o dia, por causa da vigília noturna e do medo, muito medo. Evitava aquele homem, fugia dele. Não sei se tia Maria percebeu alguma coisa. Um dia me chamou para ir à Euclidelândia, onde morava a outra irmã. Cavalgamos o dia inteiro e chegamos à noite. Não sei quantos dias ficamos nessa outra fazenda. Só voltamos a São Sebastião do Alto uns dois dias antes da festa luxuosa dos 15 anos de Vitória. Pouco depois, viajamos de volta ao Rio.

Ao chegar, me sentia estranha, não entendia a confusão que tinha se instalado na minha cabeça. Talvez, segundo Bernard Shaw, a ansiedade e o medo tenham envenenado meu corpo e meu espírito. Minha intuição dizia que todas as famílias têm baús repletos de segredos e ai daquele que ousasse revelar um só deles. Resolvi esquecer, apagar tudo da memória. Algo em mim, porém, mudou para sempre e minha amizade com Vitória e Ledinha esfriou. A alegria e a emoção dos nossos reencontros já não existiam mais e elas também não eram mais as mesmas. Aos poucos, fomos nos distanciando e um dia minha família mudou para outro bairro. Nunca mais as vi.


Só agora, quando releio as cartas de Vitória e Ledinha, me voltam as lembranças adormecidas daquele tempo, relembro os sentimentos confusos e o desassossego. Só agora consigo juntar as peças e concluir o quebra-cabeça.

Nenhum comentário:

O CLIMA DO ANO

Há tempos venho notando que a natureza absorve nossos humores, mas isso é assunto pra outro post. Lembro que, em 2016, meu pé de amora fic...